Desafiando Prometeu: a educação inteligente não será artificial

A educação contemporânea deve enfocar a "inteligência estendida", integrando IA como uma extensão das capacidades humanas

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Mirian Rodrigues e William Barter 9 minutos de leitura

A inteligência artificial está desempenhando um papel fundamental na transformação e otimização de diversos setores, como saúde, finanças, energia e varejo. No entanto, é na área da educação que se vislumbra um potencial extraordinário para a aplicação dessas tecnologias. As possibilidades e desafios que a introdução da IA pode trazer para o modelo de aprendizagem humana são notáveis.

Temos usado IA, até agora, como uma força para acelerar e continuar aquilo que já estamos fazendo. Mas vamos chegar a um ponto em que poderemos nos voltar à visão do professor Benjamin Bloom, que desde 1956 questiona o modelo de educação passivo.

Ele desenvolveu a taxonomia do aprendizado ativo, composto por seis níveis do processo cognitivo (atualizado em 2001): lembrar, entender, aplicar, analisar, avaliar e, por fim, criar. É aqui que podemos de fato disruptar a educação e usar a IA não só como um acelerador, mas como um agente de transformação na maneira com que aprendemos.

Assim como Prometeu trouxe o fogo aos humanos, desafiando as divindades e capacitando a humanidade com conhecimento e poder, a chegada da inteligência artificial pode ser vista como uma revolução que desafia as fronteiras do conhecimento humano. 

O fogo permitiu que os humanos avançassem em suas habilidades e compreensão do mundo ao seu redor; a inteligência artificial promete impulsionar a sociedade para novos patamares de eficiência, inovação e descoberta.

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No entanto, da mesma forma que Prometeu enfrentou a ira dos deuses por seu ato de desafio, a introdução da inteligência artificial também levanta questões éticas, sociais e filosóficas que exigem reflexão cuidadosa e consideração. 

É crucial abordar questões relacionadas ao viés algorítmico, que podem perpetuar desigualdades e discriminações. Nesse sentido, a supervisão e governança dos sistemas de IA por parte dos humanos são essenciais para assegurar que tais tecnologias sejam utilizadas de forma justa e responsável, promovendo a equidade no processo educacional.

LIDERAR A REVOLUÇÃO

Abandonar o modelo obsoleto do aprendizado passivo, que em geral nos traz uma capacidade de retenção do conteúdo de apenas 6% e avançar de maneira exponencial para o aprendizado ativo, apoiado pela IA e a colaboração ativa e prática, nos entrega uma eficiência de aprendizado de até 96%.

Nesse contexto, a educação deveria estar na vanguarda da revolução do agora, se adaptando para nos preparar para um cenário econômico totalmente baseado em dados, onde as IA’s serão a extensão do nosso aprendizado, abrindo portas para a tão sonhada educação personalizada e ativa.

Iniciativas como o Khanmigo da Khan Academy, ilustrada no Ted Talk de Sal Khan “How AI could save (not destroy) education” (Como a IA pode salvar [e não destruir] a educação), são horizontes possíveis quando a tecnologia é usada como um super tutor para alunos e um super assistente para os professores.

Além desse exemplo, temos um excelente convite ao aprendizado ativo sendo aplicado nas universidades com o Immersive Reader, uma ferramenta de apoio à leitura da Microsoft, onde você é estimulado de fato a ir além da simples compreensão e navegar pelas rotas da aplicabilidade.

À medida que a ênfase muda da transferência de conhecimento tradicional para o desenvolvimento de competências, a educação pode e deve desempenhar um papel fundamental na capacitação das pessoas para navegar por um futuro que, quase literalmente, será líquido, controlado por aqueles que dominarem a arte da semiótica.

Com toda a história da humanidade sendo digitalizada e todas as camadas do nosso presente monitoradas e interpretadas por algoritmos, teremos nosso perfil praticamente 100% compreendido por mentes eletrônicas, capazes de antecipar qualquer desejo ou necessidade – nossas replicas perfeitas. 

A criatividade humana pode oferecer ideias inovadoras, enquanto a IA pode dar refinamento para implementá-las de forma eficiente.

Seremos capazes de gerenciar isso para o bem, salvar tempo e usar nossas personas sintéticas para as atividades operacionais enquanto focamos em soluções de problemas maiores para garantir nossa supremacia e evolução, como sempre fizemos? 

Seriam as escolas as instituições mais valiosas ou as novas “bolsas de valores” do novo mundo digital?

Se o mundo, inevitavelmente, evolui, muda e se transforma, tendo a obsolescência como prato do dia e a complexidade como o “pão nosso de cada dia”, seremos obrigados a investir nosso tempo e ócio criativo em um novo tipo de educação, remodelando o jeito de pensar e nos educar para o aprendizado contínuo apoiado pelos nossos assistentes de aprendizado.

O FUTURO SERÁ IMPREVISÍVEL?

Mesmo diante dos avanços da IA, a capacidade de aprender e se adaptar tem sido o nosso grande trunfo. A intuição humana, a criatividade e a inteligência emocional são áreas onde as máquinas ficam aquém. Humanos e máquinas colaborando é a grande oportunidade para a inteligência coletiva.

Novas interfaces estão sendo projetadas para tornar o uso da tecnologia cada vez mais transparente e onipresente, viabilizando uma simbiose constante que dá origem à era pós-digital.

Esse conceito descreve a fase na qual a tecnologia digital está tão integrada ao cotidiano que deixa de ser vista como um fenômeno distinto ou inovador. Nesse contexto, a tecnologia digital é considerada uma parte fundamental da vida diária e da infraestrutura social, semelhante à eletricidade ou ao telefone no passado.

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É intrigante como a educação continua a ser a mãe de todas as possibilidades.

E, nessa era  pós-digital, a educação passa por transformações significativas, refletindo a integração ubíqua da tecnologia e uma nova abordagem em relação ao aprendizado e ao ensino. Sim, a capacidade de desaprender e reaprender torna-se uma habilidade crítica.

Chegamos a um momento no qual a cultura antecipatória se torna essencial, nos convidando a reinventar, a partir de agora, a maneira como vamos compor o novo conhecimento.

Saímos de um papel passivo, no qual conceitos são “decorados” e as respostas corrigidas com erros e acertos, para um ambiente ativo de co-criação constante, onde múltiplos caminhos e novos horizontes são possíveis.

A ENCICLOPÉDIA DE 3,8 BILHÕES DE ANOS

A natureza vem se adaptando há bilhões de anos. É um sistema dinâmico que evolui e aprende. Imitar e imprimir essa habilidade em nossos avanços tecnológicos, garantindo que estão alinhados com os princípios de sustentabilidade e resiliência, pode levar a um futuro mais harmonioso e promissor.

Criar uma cultura que valorize diversas perspectivas torna-se ainda mais crítico. A criatividade humana pode oferecer ideias inovadoras, enquanto a IA pode dar o refinamento necessário para implementá-las de forma eficiente.

Estamos em um momento sem precedentes, onde uma nova forma de pensar está sendo “autorada” em simbiose com a criatividade sintética.

A educação contemporânea deve enfocar a "inteligência estendida", integrando IA como uma extensão das capacidades humanas. Nesta era pós-digital, a sinergia entre humanos e IA não apenas enriquece o pensamento crítico, a resolução de problemas e a criatividade, mas também prepara as pessoas para explorar e maximizar suas capacidades inovadoras em um mundo cada vez mais veloz.

Avançar para o aprendizado ativo, apoiado pela IA, nos entrega uma eficiência de aprendizado de até 96%.

Não se trata apenas de humanos se adaptarem às máquinas, mas de máquinas compreenderem e se adaptarem às nuances humanas, o que seria impossível alcançar sem uma ferramenta com o poder das inteligência artificiais.

Tal como os ecossistemas prosperam com base na diversidade, a nossa abordagem da criatividade e da IA deve abranger um conjunto diversificado de ideias e tecnologias. Trata-se de criar uma relação simbiótica, na qual ambos melhorem as capacidades um do outro.

Existem terrenos inexplorados nas capacidades humanas e precisamos de ajuda para seguir em frente, colonizando o futuro, quando poderemos fincar a bandeira do espírito colaborativo, feito da combinação química mais poderosa do universo: curiosidade,

A natureza fornece uma riqueza de inspiração para reimaginar a educação em um mundo digital que oferece uma vasta gama de ferramentas e soluções que já tem o potencial de redesenhar a maneira com que fazemos as coisas.

Inspirados na natureza, podemos considerar a adaptabilidade dos organismos. A IA pode, igualmente, adaptar-se e evoluir, aprendendo com diversos conjuntos de dados para descobrir novos insights e soluções, em um game infinito de troca com as pessoas dentro e fora das escolas e empresas.

Inspirada na diversidade da natureza, a IA pode adaptar experiências educacionais com base em estilos e pontos fortes de aprendizagem individuais. Essa personalização aumenta o envolvimento e garante que os alunos desenvolvam as habilidades mais relevantes para seus talentos únicos, que só podem ser percebidos quando combinados com os talentos de outras pessoas.

A ESPERANÇA QUE SE RENOVA DIARIAMENTE

Assim como Prometeu, estamos diante de uma encruzilhada, onde a inteligência artificial oferece um tipo de “fogo iluminista”, renovado de oportunidades, mas também suscita questões éticas e filosóficas profundas. 

No entanto, se enfrentarmos esses desafios com sabedoria e sensibilidade, teremos a chance de moldar um futuro onde a educação seja verdadeiramente transformadora, nos capacitando para alcançar novos patamares de criatividade, inovação e evolução humana. 

Como bem nos alertou o biólogo, psicólogo e epistemólogo suíço Jean Piaget, o principal objetivo da educação é criar pessoas capazes de fazer coisas novas, “e não simplesmente repetir o que outras gerações fizeram”. 

É intrigante como a educação continua a ser a mãe de todas as possibilidades.

Assim, como guardiões do fogo do conhecimento, é nosso dever orientar o desenvolvimento da IA para o bem comum, garantindo que ela sirva como uma ferramenta poderosa para capacitar e elevar a humanidade, em vez de dominá-la ou subjugá-la.

No ambiente pós-digital, cada "byte" consumido nos servidores da nuvem é uma semente plantada no solo fértil do progresso tecnológico. Estes dados, perpetuamente regenerados a cada ciclo, nutrem a promessa de um futuro ancorado na liberdade. 

Mais do que um destino inevitável, esse futuro é um convite vibrante para nos engajarmos em uma sociedade ultraconectada e fluida, onde a inteligência sintética amplifica nosso potencial coletivo. 

Contudo, esse avanço não é isento de custos. Sim, há sempre um preço a ser pago, uma troca intrínseca ao avanço que escolhemos perseguir. Estamos prontos para esses desafios?


SOBRE O AUTOR

Mirian Rodrigues é diretora de tecnologia e inovação da farmacêutica GlaxoSmithKline (GSK). William Barter é escritor, músico, poeta e... saiba mais