5 perguntas para Gabriela Moura, diretora de criação da Talent Marcel
Para Gabriela Moura, fazer história é bom, mas reescrever a história é bem melhor. A profissional foi a primeira diretora de criação negra a ganhar um Leão no Festival de Criatividade de Cannes, marca que atingiu em 2023. Este ano, ela foi a única brasileira negra a receber premiação.
A executiva se dedica a transformar as estruturas do mercado criativo e fazer com que o reconhecimento de talentos seja mais inclusivo e com equidade.
Atualmente na Talent Marcel, a profissional já passou por grandes agências como Soko, GUT e Publicis. No meio tempo, foi vice-presidente do Clube da Criação, onde co-liderou a primeira chapa de profissionais negros. Gabriela vê a necessidade de um trabalho profundo para reduzir a falta de diversidade na publicidade brasileira.
Nesta entrevista ela fala sobre perspectivas de futuro, ferramentas para inovação e processos criativos.
FC Brasil – Feita majoritariamente por uma equipe de profissionais negros, a campanha "A Princesa e a Coroa", da Seda, que você assinou como diretora de criação, ganhou Leão de Bronze em Cannes este ano (além de outros dois troféus). A campanha recria a imagem da princesa Tiana, da Disney, só que com os cabelos crespos soltos. Qual a mensagem que esse trabalho passa para o mercado?
Gabriela Moura – No filme "A princesa e o Sapo", Tiana está o tempo todo com os cabelos presos. Essa cena dela soltando o cabelo é inédita. Aproveitamos o ineditismo para passar a mensagem da naturalização dos cuidados com os cabelos crespos.
Não há muitos produtos de cuidado de cabelo crespo para crianças. Tem para cabelos cacheados, mas não crespos. E é uma estrutura encontrada principalmente, e majoritariamente, em pessoas negras. Quando você não tem produtos que atendem essa característica humana, está negligenciando uma população – no caso a população negra.
A gente usou essa cena para chamar atenção sobre a importância de trabalhar a autoestima negra desde a infância. A ideia de que a beleza do cabelo crespo solto é natural. É uma mensagem muito grande, que é muito complexa, que é muito poderosa, mas que tem que ser trabalhada desde a infância.
FC Brasil – No ano passado, o seu trabalho premiado em Cannes foi o Uncomfortable Food, feito para a Stella Artois, que transformou o desconforto enfrentado por chefs mulheres no mercado de restaurantes. Você também foi co-autora do livro “#MeuAmigoSecreto: feminismo além das redes”. Como o ativismo impacta a sua criação?
Gabriela Moura – Tenho experiência em tratar questões de raça e gênero na comunicação, o que começou de forma natural. Sou uma mulher negra e comecei a sentir os desconfortos no mercado, não me via representada na comunicação, não tinham pessoas iguais a mim trabalhando comigo. Estamos falando de um mercado que, além de ser muito autorreferente, ainda é muito masculino e branco.
Ativismo ainda é uma palavra erroneamente negligenciada, injustiçada. As pessoas têm um certo preconceito com quem é envolvido em causas sociais. O preconceito leva a trabalhar de forma superficial com essas pautas. Não cabe aqui superficialidade, são assuntos densos e difíceis. As campanhas – tanto da Stella Artois, do ano passado, quanto a da Seda, este ano – foram criadas a partir de estudos científicos, da análise e entendimento de toda a população.
Não consigo pensar a comunicação de outra forma. Preciso entender com quais públicos conversamos quando passamos uma mensagem. Se a gente quer ter uma comunicação mais aprofundada, levantar o debate, gerar conversa longa, que não morra depois de 15 dias da campanha no ar, ela precisa ser feita com embasamento. Talvez seja isso que as pessoas chamam de ativismo.
Diria que é mais: é trabalhar com a responsabilidade de quem sabe que está impactando as pessoas. Para o bem ou para o mal. A gente precisa escolher: quero gerar algo positivo, que traga mudança cultural e gere legado, ou quero fazer algo que as pessoas vão esquecer em uma ou duas semanas? Todo profissional ético precisa trabalhar essas reflexões de maneira contínua.
FC Brasil – Como vice-presidente do Clube da Criação, você faz parte primeira chapa formada de representantes negros. Um dos temas que tratados é o aumento de números de líderes pretos no mercado, indicador que segue baixo. A partir do que você vê no dia a dia, quais discussões e mudanças deveriam ser feitas para alterar este número?
Gabriela Moura – Discussões que passam desde a infância, em falar sobre como as pessoas viveram sua infância e juventude. Se elas tiveram uma época livre de violências diversas – não estou falando na violência física, mas da falta de acesso à educação de qualidade, à moradia de qualidade, à alimentação de qualidade.
Quando falamos de uma infância miserável, quem são essas crianças? A maioria são crianças negras. Não estou falando que sejam apenas negras. Mas, se quiser tratar de pobreza, precisamos tratar o grupo que é mais afetado por ela.
As condições nas quais as pessoas vivem nessas primeiras fases da vida ditam como será a vida na fase adulta. Não dá para usar o mesmo medidor para públicos e populações tão diferentes. Quando falo em liderança, e não apenas em comunicação, tem pessoas que vieram dos mesmos espaços e sobra muito pouco para quem vem de outras áreas, de outras vivências.
As pessoas negras, pobres, mulheres, enfrentam demarcadores sociais que, muitas vezes, são cumulativos. Existem desafios para as mulheres negras, para mulheres negras e pobres. Alguns estudiosos chamam de interseccionalidade. Se não se fala desse elefante branco, não se consegue resolver o problema.
Não pode trabalhar ações pontuais apenas, tem que trabalhar em profundidade. Além de fazer trabalho ativo de contratação de pessoas negras, de ir atrás de onde as pessoas estão, precisa trabalhar o desenvolvimento desses profissionais e o local para o recebimento das pessoas.
Estou falando de trabalharmos ética, humanismo, educação antirracista, multiculturalidades, para aprender que nosso trabalho deriva de muitas culturas. Não existe uma verdade universal na criatividade.
FC Brasil – Você é diretora de criação e usa imagens feitas a partir de uma ferramenta de IA generativa. De que forma a tecnologia pode potencializar a criatividade em áreas como a comunicação, a publicidade?
Gabriela Moura – Estamos em um momento muito inicial da inteligência artificial generativa. Toda vez que surge uma nova tecnologia, a gente ouve coisas muito maravilhosas, mas também muito horrorosas sobre essa mesma tecnologia.
Como sou redatora, gosto de usar a IA generativa para criar imagens, porque permite transformar minhas palavras em visuais. Gosto muito das ferramentas de IA para o exercício da criatividade, para testar criações. Pode gerar uma ideia que não teria de outra forma, pode gerar conexões com outros trabalhos seus.
Dá para mesclar tecnologias, usar a imagem criada por IA e retrabalhar no Photoshop, recriar um roteiro com base nas cenas que criou, gerar moodboards, storyboards, personagens. Dá para colocar a imaginação viva ali.
Se a gente quer ter uma comunicação mais aprofundada, ela precisa ser feita com embasamento. Talvez seja isso que as pessoas chamam de ativismo.
Tem muita coisa que a gente pensa mas não consegue explicar tão bem em palavras, e as IAs servem para isso. Para melhorar nossas capacidades.
Apesar de esse mundo ser maravilhoso, eu defendo que qualquer que seja a tecnologia, a pessoa use sem achar que será milagrosa e que vai fazer todo o seu trabalho. É ilusória a ideia de que IA vai fazer o trabalho por você, porque o trabalho criativo depende do fator humano. Cada cérebro é único.
Outro ponto importante é manter o olhar crítico e os pés no chão quando falamos de IA. Essa indústria, no geral, tem que parar de achar que só quem lida com essa tecnologia é gênio e está na vanguarda.
Não somos melhores do que ninguém porque sabemos usar uma ferramenta específica. Tem gente que vai preferir IA, tem gente que vai preferir usar outras ferramentas. E tem espaço para todo mundo.
FC Brasil – Que perguntas você gostaria de estar respondendo no momento?
Gabriela Moura – Eu queria estar respondendo sobre criatividade, sobre processos criativos. Sobre como conseguir resolver os problemas a partir da criatividade, trabalhando criativamente. Compartilhar sobre os processos com outras mulheres, escutá-las. Quero que isso se torne um movimento recorrente.
Tem todas as questões que permeiam a minha vida e a minha carreira enquanto mulher negra, e isso vai estar sempre refletido nas minhas falas, nas minhas criações, no meu estilo de liderança. Não preciso falar sobre isso abertamente, porque já está no meu trabalho.