5 perguntas para Maria Eugênia Riscala, CEO da Kaya Mind

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Redação Fast Company Brasil 9 minutos de leitura

A descriminalização do porte de maconha é pauta do Supremo Tribunal Federal (STF) nesta semana. O assunto faz a sociedade brasileira encarar os seus preconceitos e debater a quem interessa a guerra às drogas. Além disso, dá um empurrão para a indústria que tem no produto sua matéria-prima.

Para fugir dos mitos e da desinformação em torno do tema, nada melhor do que dados. E é o que Maria Eugênia Riscala, CEO e cofundadora da Kaya Mind, nos traz nesta entrevista à Fast Company Brasil.

A companhia é a primeira empresa especializada em dados e inteligência de mercado no segmento de cannabis e cânhamo. Um dos levantamentos feitos, no relatório anual do setor, mostra que o país já tem pelo menos 80 empresas que produzem, usam ou pesquisam sobre cannabis medicinal. São quase 190 mil pacientes que utilizam maconha legalmente no Brasil.

O mercado brasileiro tem potencial de movimentar R$ 26,1 bilhões ao ano, considerando a venda de todos os usos da cannabis.

No mundo, a Prohibition Partners indica que o mercado de cannabis legalizada tem potencial de chegar a US$ 105 bilhões até 2026. Para o Brasil, a expectativa da Kaya Minds muda de acordo com o tipo de legalização que pode acontecer.

Se for apenas da cannabis medicinal, a oportunidade é de movimentar R$ 9,5 bilhões por ano. Agora, se for a legalização total do uso e produção, as estimativas chegam a R$ 26,1 bilhões em vendas por ano. Aqui, Maria Eugênia mostra qual caminho o país deve trilhar para apoiar o setor.

FC Brasil – No momento, o STF está julgando o Recurso Extraordinário 635.659, que pode descriminalizar o uso pessoal da maconha no país. Caso seja aprovado, o que este recurso significa para o mercado brasileiro de cannabis?

Maria Eugênia Riscala – O que o STF está julgando neste momento tem um impacto muito maior para a sociedade do que para o mercado. Isso porque, hoje, a criminalização da maconha afeta uma população específica, normalmente de pessoas negras e periféricas, principalmente homens, que são presos por julgamento do delegado e do policial.

Caso a gente consiga colocar uma quantidade de porte, que é o que o STF está tentando aprovar, terá um impacto grande para essas pessoas, que não vão mais depender do que o policial e o delegado “acham” que é certo.

Até o quarto ano após a regulamentação [do uso medicinal], seriam mais de 6,9 milhões de pacientes fazendo tratamento recorrente.

Descriminalizar traz um impacto positivo sobre como a sociedade vê o tema. Atualmente, existe muito preconceito envolvido quando falamos de maconha. O julgamento conseguiu ampliar o discurso sobre a cannabis.

Muitos que são contrários ao uso vão entender que há um benefício claro não apenas no uso da cannabis medicinal, como também no uso adulto, já que ele é, sim, uma realidade no país.

Mas, mais do que isso tudo, o julgamento desse recurso no STF é uma forma real de parar com a criminalização de jovens negros e periféricos, que hoje são julgados pela sua cor e por onde vivem, não porque têm o porte de cinco gramas de maconha.

FCBrasil – A Kaya Mind faz mapeamentos anuais sobre o setor no Brasil. No ano passado, vocês mostraram que, mesmo sem uma regulamentação abrangente, o país tem mais de 80 empresas e 1,9 mil produtos relacionados à cannabis. Qual o potencial desse mercado?

Maria Eugênia Riscala – Essas 80 empresas que pesquisamos no ano passado para nosso primeiro anuário, na verdade, são aquelas que a gente encontrou um CNPJ. Se pensarmos em marcas e atores, tem muito mais gente. Só que o potencial desse mercado é muito maior do que só o medicinal.

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Estamos falando de R$ 9,5 bilhões que poderiam ser movimentados no país em quatro anos de ampla regulamentação. O que significa que, nos anos seguintes, o valor continua aumentando, mas o mercado se estabiliza em tamanho. Até o quarto ano após a regulamentação, seriam mais de 6,9 milhões de pacientes fazendo tratamento recorrente. Ou seja, seriam muito mais brasileiros beneficiados.

Afinal de contas, nem todo mundo é paciente: nesse ecossistema existem profissionais da saúde, de tecnologia, de distribuição. E não consigo deixar de lado as famílias que sofrem. Podem não ser as famílias que farão o tratamento em si, mas elas seriam completamente mudadas. Imagina a vida de pais de crianças com epilepsia refratária, por exemplo, podendo ter acesso a um tratamento? É uma dinâmica alterada.

Se falar em regulamentação ampla, pensando no uso adulto e do cânhamo, o número se torna muito maior. É um mercado com potencial de movimentar R$ 26,1 bilhões ao ano, considerando apenas a venda de todos os usos da cannabis. Seriam quase R$ 8 bilhões ao ano recolhidos de impostos.

O Brasil poderia fazer muita coisa com esse dinheiro. Isso tudo significa a abertura de 328 mil empregos formais e informais. Em um país que sofre com desemprego e inflação, seria muito benéfico.

FCBrasil – Países como Uruguai e Estados Unidos passaram pelo processo da legalização da cannabis. Quais são os exemplos que o Brasil deveria seguir?

Maria Eugênia Riscala – Hoje, a regulamentação que existe nos Estados Unidos não é federal. Seguir o modelo de lá não é boa ideia. O Uruguai tem uma regulamentação feita para um país de três milhões de pessoas. Não podemos negar a diferença de tamanho entre os países. A gente não vê nenhum desses dois países como um bom modelo a ser seguido, mas como lições a serem aprendidas.

Outros lugares estão seguindo caminhos interessantes. É o caso do Paraguai, por exemplo, que está distribuindo sementes de cânhamo para pequenos produtores e famílias indígenas. É um país que já tem a produção ilegal. Quando distribuem as sementes, eles dão chance para essas pessoas entrarem no mercado legal.

o julgamento do recurso no STF é uma forma real de parar com a criminalização de jovens negros e periféricos, que hoje são julgados pela sua cor e por onde vivem.

A Califórnia fez o oposto: colocaram taxas de juros altas e não fizeram programas de reparação de danos para quem produzia de maneira ilegal. Hoje, o mercado da Califórnia está concentrado na mão de poucas empresas, extremamente caras, grandes indústrias e conglomerados, e ainda tem um mercado ilegal maior do que o legal.

Dito isso, o melhor exemplo talvez seja o que tem acontecido na Europa, os modelos que têm se desenvolvido por lá. Além disso, o modelo canadense não é ruim, apesar de ter falhas operacionais muito claras. Lá, a taxa de impostos é alta e não tem programa de reparação histórica, resultando em um mercado ilegal grande.

Existem outros modelos nada tradicionais que devemos olhar também, como o da Tailândia, que distribuiu mudas de cannabis para a população. Se a Tailândia, que até então tinha pena de morte para o consumo de cannabis, conseguiu distribuir plantas para a população, nós [no Brasil] também poderíamos.

FCBrasil – Quais interpretações erradas e preconceitos ainda atrapalham o debate da legalização da cannabis no Brasil?

Maria Eugênia Riscala – Talvez seja o que há em excesso – é difícil até elencar todos. Acho que a primeira interpretação errada é que a maconha é entrada para outras drogas. Isso está provado por uma série de estudos.

Muitos dependentes químicos começam, na verdade, com álcool e cigarro. Se fosse escolher uma droga que é porta de entrada para outras drogas, seria o álcool. Mas esse título é associado à maconha.

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Outro mito com relação à cannabis é que ela não tem nenhuma utilização medicinal, que é tudo THC, para ficar “chapado”. Só que a cannabis tem mais de 100 compostos diferentes. Um deles é o THC, mas ele também é medicinal. Se for usado em forma de óleo, por pessoas com condições médicas específicas, vai fazer muito bem.

Outro grande pré-conceito que existe é de que quem fuma maconha é “vagabundo”. Existem milhares de pessoas bem-sucedidas que são usuárias de cannabis de forma recreativa ou medicinal.

O ponto também é sobre como e quanto se usa. O que faz mal da substância é o excesso. O mesmo serve para o refrigerante, o café, o açúcar. Isso me lembra aquela entrevista que a Rita Lee deu para o Pedro Bial, quando perguntam se ela toma drogas, e ela responde: “de qual droga está falando? Café? Álcool?”.

o grande tabu que existe sobre a maconha é de que as pessoas não fumam. tem muita gente que fuma recorrentemente mas não se diz usuário.

No final, o grande tabu que existe sobre a maconha é de que as pessoas não fumam. Parece que é algo que não existe na sociedade. Tem muita gente que tem vergonha de falar que gosta de fumar um beck, tem muita gente que fuma recorrentemente mas não se diz usuário.

Uma pesquisa do Senado, bancada pelo gabinete da senadora Mara Gabrilli (PSDB-SP), fez uma série de perguntas sobre comportamento. Uma delas era: você já usou maconha em algum momento da vida? Apenas 7% da população respondeu que sim.

Outra pergunta dessa mesma pesquisa era: você conhece alguém que fuma maconha? Quase 80% [78%] disseram que sim. Das duas uma: ou esses 7% são realmente pessoas muito populares ou tem muita gente que usa cannabis mas tem medo de admitir.

FCBrasil – Quais são os benefícios da cannabis medicinal? Quais pesquisas estão sendo feitas sobre o tema?

Maria Eugênia Riscala – De todas, essa é a pergunta mais fácil de responder: tem muitos benefícios. Hoje existem estudos clínicos em andamento com três níveis de evidência que apontam que a cannabis pode ser usada para tratar epilepsia, transtorno do espectro autista, ansiedade, esclerose múltipla.

Segundo levantamento da Kaya Mind, já há pesquisas avançadas para o uso de cannabis para o tratamento de 26 condições médicas diferentes. Existem condições que normalmente não são associadas com a cannabis, como o glaucoma. Existem pesquisas que mostram que ela pode ser usada para ajudar em condições metabólicas.

Hoje, o Brasil é um dos maiores publicadores do tema da cannabis medicinal. Existem mais de 166 pesquisas realizadas no país em faculdades públicas, como Universidade de São Paulo, Unicamp, Universidade de Brasília e Universidade Federal do Rio Grande do Norte. É um tema que está ficando cada vez maior e o Brasil tem chance de ser protagonista.


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