5 perguntas para Talita Azevedo, fundadora da oná

De que adianta um carro que voa se metade da população ainda não tem acesso a saneamento básico? A pergunta, feita por Talita Azevedo, fundadora da oná, é um bom ponto de partida para entender o tipo de inovação defendido por ela. Uma inovação que olha para o passado antes de projetar o futuro.
Publicitária de formação e pesquisadora em tecnologia e história brasileira, Talita criou o Presente Histórico, um mapa interativo que reúne territórios marcados pelo apagamento da história negra no Brasil. São cidades, vilarejos, patrimônios e memórias que ficaram fora das narrativas oficiais, mas seguem vivos na cultura e na ancestralidade.
A partir de uma trajetória que cruza dados, educação, arte e território, Talita propõe outro jeito de pensar desenvolvimento, com os pés no presente e os olhos voltados para o que a história não pode deixar de lado.
Nesta entrevista, ela fala sobre a construção do projeto, a importância da inteligência regional e os caminhos para tornar a tecnologia mais acessível, colaborativa e comprometida com a realidade brasileira.
FC Brasil – O Presente Histórico é um mapa interativo dedicado a regiões que passaram por apagamento. Por que a indústria de inovação deve olhar para a história?
Talita Azevedo – Você sabia que Campinas [a terceira maior cidade do Estado de São Paulo] foi potencialmente o último lugar a abolir a escravidão? Sabia que existe uma cidade no Espírito Santo, chamada Itaúnas, que foi soterrada pela areia porque decidiram tirar toda a vegetação local?
Como ninguém fala sobre um território que foi soterrado pela especulação imobiliária? Existem outras histórias que atravessam a geolocalização, o mercado, a noção de progresso, e não podemos esquecê-las.
No Rio de Janeiro, por exemplo, o Cais do Valongo foi o maior porto de entrada de pessoas escravizadas das Américas. Do lado está o Porto Maravilha.
Durante uma reforma ali perto, no Instituto Pretos Novos, descobriram que havia milhares de corpos enterrados – um cemitério não documentado. Virou um sítio arqueológico, com mais de 20 mil pessoas escravizadas que morreram logo após o desembarque.

Estamos ali do lado, falando de inovação, abrindo o MacBook para pensar o futuro, enquanto ignoramos o que aconteceu ali? A gente precisa preservar. Usar a tecnologia como uma espécie de raio-X, escanear e contar histórias. É para isso que a tecnologia serve: resolver problemas. Qual problema você está resolvendo?
Metade da população brasileira ainda não tem acesso a saneamento básico, enquanto investem em carros que voam. Qual é a lógica? É por isso que falo em inteligência regional. A tecnologia não pode ignorar a realidade das pessoas. Ela tem que partir do território, das urgências locais, daquilo que realmente pode transformar vidas.
Não adianta criar soluções futuristas que não se conectam com as necessidades básicas. A inovação precisa resolver problemas reais. É aí que entra o Presente Histórico: um projeto que olha para trás para poder construir o futuro. Que usa dados, mapas, memória e educação como ponto de partida para pensar desenvolvimento com responsabilidade.
FC Brasil – Você tem experiência em áreas de dados, mas também de publicidade e artística. Falou-se no South by Southwest (SXSW) 2025 sobre a importância de ter uma visão ampla de conhecimentos. Como isso se conecta com o projeto?
Talita Azevedo – Eu parto sempre da pergunta: o que é tecnologia? Às vezes, a gente acha que tem que ser uma inteligência artificial, um bot, uma vertente de web3, explorando os recursos mais futuristas. E tudo bem também, mas quero provocar a partir de outro lugar, mais subjetivo. Mais interdisciplinar.
O projeto é um lugar para as pessoas não negarem sua origem, nem sua história, mas para olhar para frente.
É um trabalho que integra matemática, português, história, geografia e tecnologia. Dá para ser usado por universidades, escolas e empresas. Inclusive, quero que o projeto dialogue com as diversas vertentes do mercado de tecnologia, como healthtechs, fintechs.
A interdisciplinaridade não é só um conceito bonito, ela é o único caminho possível para encontrarmos soluções mais úteis, mais humanas, mais efetivas. Para encontrar os Brasis dentro do Brasil.
FC Brasil – Quais são os próximos passos do projeto?
Talita Azevedo – Queremos torná-lo open source, porque reconheço que a construção desse acervo precisa ser coletiva. A ideia sempre foi essa: liderar pessoas, abrir portas, desenvolver – porque o que está aqui não é meu. É um portfólio coletivo do Brasil e dos brasileiros.

Queremos levar o projeto para escolas e espaços de formação de entusiastas em programação, desenvolvimento de software e historiadores, e enriquecer os dados do mapa. Não só com localização, mas com mais camadas de informação, como histórias, fotografias, linhas do tempo.
E também para mapear bens imateriais, como festividades e costumes locais. Interpretar o Brasil em uma base de dados. Imagina as histórias que podemos descobrir em regiões mais remotas? Há também o passo para tornar o projeto mais acessível, por meio de um aplicativo.
FC Brasil – Falamos de futuro o tempo todo. Por que valorizar o passado é essencial para criar o futuro?
Talita Azevedo – O Presente Histórico nasceu de uma busca pessoal. Era sobre mim. Queria descobrir minhas raízes. E, nesse processo, falhei. Não consegui encontrar a parte da família do meu avô.
Percebi que não vou conseguir revitalizar todas as histórias apagadas, mas posso começar daqui: como criar memória a partir de agora? Como gerar uma qualificação mais efetiva, que atravesse todos os recortes da sociedade?

Podemos criar um presente mais informado, com memórias que sobrevivam aos tempos. As pessoas precisam saber de onde vieram para pensar no que está por vir.
No dia a dia da tecnologia, a gente fala sobre desenvolvimento, carreira, passo a passo. A gente fala sobre objetivos, sobre metas, sobre KPIs. Mas, se não temos contexto sobre onde estamos pisando, sobre de onde viemos, o direcionamento fica à deriva.
O projeto é um lugar para as pessoas não negarem sua origem, nem sua história, mas para olhar para frente. O tempo é curto. A vida passa rápido. Quero que a gente tenha uma transformação efetiva, aqui e agora, nessa geração.
FC Brasil – Você foi nomeada embaixadora desta edição do Web Summit Rio. Qual a importância deste passo e o que espera do festival?
Talita Azevedo – Quando soube do Web Summit no Rio de Janeiro, há dois anos, me esforcei para ir. Disse para mim mesma: esse lugar me pertence, vou achar um jeito de chegar lá. Então, fui por conta própria.
As pessoas precisam saber de onde vieram para pensar no que está por vir.
Levei parte do projeto para lá e, nas discussões, vi que havia outro caminho tecnológico para ele. Na primeira vez que fui, foi para olhar o mercado internacional e para apresentar minhas ideias.
Este ano, ter sido nomeada embaixadora não é só uma realização profissional, mas uma responsabilidade. Quero levar pessoas do interior de São Paulo para o evento. Levar estagiários, profissionais júniores, profissionais de nível pleno, para ajudar a desenvolver o olhar estratégico nos jovens.
Também estou animada para discutir as possibilidades da tecnologia open source e quais outras capacidades o Presente Histórico pode absorver.