Generosidade e solidariedade em jogo: o que temos pela frente?

Como o engajamento dos fãs de esportes e eventos esportivos pode fortalecer a cultura da doação no Brasil

Créditos: Vimal S/ Unsplash/ sqback/ iStock/ Freepik

Carla Purcino 5 minutos de leitura

É curioso pensar na generosidade e solidariedade no contexto das políticas públicas, campeonatos de futebol e casas de apostas. À primeira vista, parece não haver ligação alguma entre esses elementos.

No entanto, ao olhar mais de perto, percebe-se que essas áreas, embora aparentemente díspares, traçam caminhos delicados e poderosos entre si. E é sempre mais interessante navegar por conexões contra-intuitivas.

Na última semana, foram publicados dois estudos sobre a cultura de doação. O primeiro, World Giving Index, já em sua 14ª edição, entrevistou 145 mil pessoas em 142 países. A pesquisa examina três pilares: quanto as pessoas de cada país doam para ONGs, ajudam estranhos e se envolvem em trabalhos voluntários.

Os resultados, de maneira geral, são animadores: nunca doamos tanto em termos globais, com 73% da população mundial envolvida em alguma dessas atividades.

Mas esses números também desafiam algumas de nossas percepções mais enraizadas sobre o assunto. A Indonésia, por exemplo, foi o país mais bem colocado pelo sétimo ano consecutivo. Quênia, Cingapura e Gâmbia ocupam as posições subsequentes.

O Brasil, por outro lado, está na 86ª posição, após recuperar três posições em relação a 2023, mas ter caído drasticamente 71 posições entre 2021 e 2022  (a pesquisa foi anterior às enchentes que assolaram o Rio Grande do Sul).

O que essas colocações podem nos dizer? A Indonésia é um dos países mais pobres do G20, junto com a Índia. O Quênia, mesmo sendo uma das potências da África Oriental, ainda sofre com extrema desigualdade social, conflitos sociais e severas questões de governança. Por fim, a Gâmbia enfrenta historicamente a dificuldade de geração de empregos, tem uma população majoritariamente rural e problemas relacionados à desnutrição infantil.

De cara, entendemos que generosidade não tem a ver necessariamente com divisão de riquezas ou abundância. Fosse assim, como esses três países estariam entre as nações mais generosas?

Por outro lado, vemos Cingapura, a pérola da Ásia, compondo o topo do ranking, mesmo em condições econômicas tão distintas (taxa de pobreza de aproximadamente 3%, um dos grandes centros financeiros do mundo e reduto de bilionários). Como explicar?

Fonte: Global Trends in Generosity/ World Giving Index 2024

Podemos dizer que alguns destes países são generosos, mas outros são solidários. Ainda que usadas lado a lado no vocabulário cotidiano, generosidade e solidariedade diferem de maneira muito importante, tanto em aspectos econômicos como em aspectos filosóficos.

A generosidade emerge quando agimos em benefício do outro, ainda que não tenhamos benefício algum nesta relação ou sequer compartilhemos de seus valores pessoais.

O filósofo francês André Comte-Sponville diz que a generosidade é a virtude mais nobre de todas, pois engloba o bem agir sem nenhuma expectativa de retribuição. Segundo ele, a generosidade seria “saber-se livre para agir bem e querer-se assim”.

A solidariedade, por outro lado, surge quando há um compartilhamento de valores e interesses. Ou seja: faço o bem porque será positivo para o outro e para mim também. Para Comte-Sponville, a generosidade seria uma virtude moral e a solidariedade uma virtude política.

generosidade não tem a ver necessariamente com divisão de riquezas ou abundância.

Isso talvez explique um pouco os líderes de ranking. A cultura indonésia é alicerçada em doações religiosas e valores comunitários, bem como o Quênia e a Gâmbia. Já Cingapura vive um momento de forte fomento à cultura de doação por parte do governo.

Algumas iniciativas são o Programa de Voluntariado Corporativo de Cingapura, que incentiva parcerias entre instituições de caridade e empresas, por meio da concessão de benefícios fiscais sobre o tempo de voluntariado dos funcionários.

Outra iniciativa é o Change for Charity, que incentiva cingapurianos a fazerem doações espontâneas em pontos de venda e que são equiparadas pelo governo, a partir de um fundo de SGD (o dólar de Cingapura) de 20 milhões de dólares.

Para os doadores com elevado patrimônio líquido, as novas regras fiscais para os escritórios familiares dos ricos significam que podem ser reivindicadas deduções fiscais substanciais para doações fora do país. Em resumo, política pública no seu melhor em prol da filantropia.

O segundo estudo, Doar Brasileiro, do Instituto MOL, explora como os grandes territórios de mobilização no Brasil se relacionam com a cultura de doação.

"O Instituto MOL está comprometido em construir uma nação de doadores, e acreditamos que os territórios com grande mobilização popular são aliados essenciais nesse processo", diz Mariana Campanatti, diretora executiva do instituto. Tarefa árdua para aquela nossa 86ª colocação do World Giving Index.

Centrado na investigação de como o engajamento dos fãs de esportes e eventos esportivos pode fortalecer a cultura da doação no Brasil, foram identificadas boas oportunidades para potencializar essa conexão. Dos 1.176 entrevistados, 24% disseram que doariam a partir de um chamado de seu time de futebol do coração e 21% doariam a partir do chamado de um atleta que admiram.

Mais da metade (58%) acha que anúncios durante eventos esportivos incentivam muito a doar e 91% teriam boa impressão ao ver campanhas de doação sendo lançadas em eventos esportivos, enquanto 93% acham que o vínculo com campanhas de doação agrega positivamente à imagem de um atleta.

Infelizmente, o cenário que temos hoje em relação à publicidade de campeonatos esportivos e a participação de atletas na difusão de mensagens anda um pouco diferente. Estamos diante de uma avalanche de campanhas financiadas pelas casas de apostas.

Inúmeros estudos – sob o ponto de vista comportamental, psicológico e financeiro – têm evidenciado o prejuízo galopante das BETs para a nossa sociedade, sendo esperada no curtíssimo prazo uma epidemia com alto risco para a saúde pública e, principalmente, para nossas crianças.

A generosidade emerge quando agimos em benefício do outro, ainda que não tenhamos benefício próprio.

Nos próximos meses, veremos debates intensos sobre a regulamentação desse setor. O governo já demonstrou interesse na arrecadação de impostos e há um movimento para consolidar players e atrair grandes conglomerados de comunicação.

Se os dados demonstram que não somos um povo genuinamente generoso, quebrando o tabu do brasileiro cordial, que ao menos esse processo possa seguir o exemplo de países como Cingapura, criando incentivos adequados para promover a cultura de doação.

Que possamos, ao menos, apostar em nos tornarmos uma nação cada vez mais solidária, construindo um futuro de sorte para quem precise, mesmo em meio a tantos jogos de azar.


SOBRE A AUTORA

Publicitária, com foco em estratégia de marcas, inovação e comunicação voltadas para impacto, reputação e sustentabilidade. saiba mais