Lideranças do Pacto Global da ONU no Brasil são acusados de assédio moral
CEO afirma que nunca corroborou com ambiente de exclusão, racismo ou violência de gênero. De acordo com a organização, "a verificação dos fatos seguirá com imparcialidade, rigor e sigilo" *
O Pacto Global da ONU simboliza o compromisso com ética, justiça e sustentabilidade. Ele engaja mais de 2,3 mil empresas no Brasil – muitas delas de grande porte – para adotar práticas responsáveis e inclusivas.
Por isso, as denúncias de assédio moral, discriminação e violência psicológica contra o CEO Carlo Linkevieius Pereira e o diretor Otávio Toledo que foram à público na semana passada foram recebidas com choque e tristeza.
O caso é complexo e permeado de relatos duros: 12 pessoas expõem abusos que vão de humilhações públicas e gritos a discriminação de gênero e raça. Diante da falta de respostas adequadas aos alertas feitos nos canais internos da organização desde 2022, o grupo decidiu registrar uma denúncia coletiva junto ao Ministério Público do Trabalho em São Paulo. A etapa atual do MPT é de reunião de informações para decidir se acolhe ou não a denúncia.
“Estamos muito confiantes de que o procurador dará andamento ao processo”, disse Daniela Laurentino, uma das advogadas que representa os denunciantes. Enquanto isso, novas vítimas têm procurado a representação jurídica do grupo para compartilhar seus depoimentos.
Um documento de 115 páginas, cuja existência foi revelada pelo UOL, descreve situações insalubres de trabalho, com alto contraste aos princípios de dignidade e equidade que a organização promove. O ponto crucial: a maioria das vítimas, 11 delas, são mulheres e trabalham ou trabalharam no Pacto. Duas vítimas e denunciantes conversaram com a Fast Company Brasil sob a condição de anonimato.
“Quando mais de 10% da força de trabalho de uma organização pede ajuda e denuncia situações degradantes fica claro que o que estamos fazendo não é o caso de assassinato de reputação das lideranças envolvidas”, afirma a denunciante #1.
A VULNERABILIDADE DE MULHERES DENTRO DE ORGANIZAÇÕES
A presença feminina em organizações, mesmo em funções de autoridade, não assegura imunidade contra abusos. Estar em ambientes que não praticam equidade genuína internamente as deixam expostas.
“Ainda quando ascendem, elas seguem enfrentando sistemas que, historicamente, as silenciam ou as transformam em símbolos de inclusão superficial, perpetuando o sistema em troca de benefícios simbólicos e limitados”, afirma Tayná Leite, mestra em gênero e ex-gerente executiva de direitos humanos e trabalho do Pacto Global.
Embora a transformação cultural seja um processo contínuo e desafiador, ações para proteger o lado mais vulnerável devem ser rápidas.
Entretanto, a realidade do que acontece após denúncias de assédio e violência de gênero é, como destaca Tayná, “cruelmente previsível”. “A primeira defesa dos agressores é a da ‘quem me conhece sabe’. A segunda é apelar para mulheres ao seu redor para validarem uma suposta ‘reputação’ que o tornaria incapaz de tais abjetas condutas.”
Esse padrão não é isolado. Um exemplo semelhante ocorreu no caso de Boaventura de Sousa Santos, quando pesquisadoras de um coletivo internacional relataram publicamente as violências e os assédios que teriam sofrido do renomado professor e sociólogo do Centro de Estudos Sociais da Universidade de Coimbra, em Portugal. Mesmo após as acusações, ele continuou a trabalhar com pós-doutorados e ainda entrou com uma ação cível para “proteção da honra”.
Denunciar, portanto, está longe de ser fácil. “Quando grupos política e socialmente minorizados denunciam ‘aliados’, suas vítimas precisam superar a sensação de culpa por ‘estarmos agindo contra a agenda’ e sermos acusadas por pessoas próximas, inclusive, de sermos as ‘responsáveis’ por retrocessos nas pautas que todas defendemos”, afirmou a denunciante #2.
EXEMPLOS DE VIOLÊNCIA
“Durante uma das reuniões semanais presenciais com toda a equipe, algumas pessoas negras decidiram tirar uma foto juntas, o que gerou desconforto. Fui informada de que uma pessoa da diretoria, o Otávio, não gostou da foto e acionou o RH para tratar o assunto. “Foto só de gente preta? Racismo reverso?”
“Quando questionei o motivo da reunião, ele respondeu gritando e batendo na mesa: ‘eu sou o CEO dessa porra e eu que decido o que é melhor!’. Fiquei chocada e humilhada”
“Fui acusada de não ter sido profissional por ter tirado licença médica e fui constantemente assediada depois disso. Chegaram ao absurdo de contatar minha médica para discutir o meu caso sem a minha permissão.”
SUPRESSÃO DE VOZES E DESRESPEITO À AUTONOMIA
Há relatos de que tais lideranças masculinas de alto nível frequentemente deslegitimavam ou impediam as lideranças femininas em cargos inferiores de questionar decisões desalinhadas com os valores do Pacto.
As narrativas, sustentadas por documentos como conversas de WhatsApp e e-mails, apontam para um ambiente onde o diálogo era bloqueado e um padrão de decisões de cima para baixo que geraram preocupações sobre a integridade de algumas movimentações
O LADO POSITIVO DA CORAGEM
Há um lado positivo em meio à dor e ao desgaste que esses relatos trazem: o próprio ato de denunciar. Ele sinaliza que o antigo mundo – aquele onde abusos eram encobertos e normalizados – já não é mais dominante. A realidade que emerge, ainda que imperfeita, é a de cada vez mais consciência desses problemas.
Nela, pessoas vulneráveis estão ganhando força para dizer: “eu não preciso aceitar isso. Eu posso falar. Eu posso denunciar.” Esse progresso, por mais árduo que seja, é algo que deve ser celebrado com alívio.
AGORA, O QUE PRECISAMOSÉ TRANSPARÊNCIA
O afastamento temporário das lideranças acusadas e a contratação de uma auditoria externa (leia abaixo no posicionamento oficial da organização) foram passos corretos e necessários tomados pelo Pacto. Porém, é urgente que exista transparência com os próximos avanços, com ações comprometidas com uma transformação verdadeira e a criação de ambientes seguros e inclusivos.
Também é preciso um cuidado maior com situações como a apresentada, em que vítimas permanecem vulneráveis mesmo após a denúncia, por continuarem a trabalhar na organização. Esse caso pode ser um bom momento para relembrar a todas as empresas e instituições: falar de ética e responsabilidade é simples; viver esses valores é o verdadeiro desafio.
A presença feminina em organizações, mesmo em funções de autoridade, não assegura imunidade contra abusos.
Esse cenário não é inédito ou raro. Um exemplo recente é o caso do ex-ministro da dos direitos humanos e cidadania, Silvio Almeida, acusado de assédio sexual.
Embora a transformação cultural seja um processo contínuo e desafiador, ações voltadas para proteger o lado mais vulnerável devem ser rápidas. No caso de Almeida, ele foi retirado do cargo antes mesmo da instauração de um inquérito pela Polícia Federal para investigar as acusações de assédio sexual e moral.
O afastamento não inverte a lógica de presunção de inocência, mas reflete a impossibilidade de manter alguém em posição de poder e influência enquanto as investigações ocorrem – especialmente considerando que o próprio ex-ministro utilizou o Instagram oficial do ministério para se defender e contra-atacar o movimento Me Too Brasil, que o denunciou.
O Pacto Global, com sua força simbólica e capacidade de influência, tem a chance de se tornar um exemplo de mudança, reverberando ensinamentos sobre contornos autênticos em momentos de crises para todas as instituições, sobretudo aquelas criadas com o propósito de moldar um novo mundo.
A Fast Company Brasil solicitou entrevistas com os líderes do Pacto Global. A organização enviou uma nota oficial como resposta. Depois da publicação deste texto, Carlo Pereira também encaminhou uma nota com o seu posicionamento. Publicamos ambas abaixo:
Posicionamento Carlo Pereira
Há mais de duas décadas dedico minha carreira à atuação junto a organizações da sociedade civil, empresas e governos, sempre focado na promoção da sustentabilidade. Sou um ativo defensor da inclusão e diversidade dentro das organizações - esta é uma agenda prioritária a mim pessoal e profissionalmente.
Desta forma, durante os sete anos à frente do Pacto Global da ONU - Rede Brasil como CEO, exemplos práticos desta minha programática são iniciativas como o Ambição 2030, uma série de 10 movimentos idealizada para acelerar o cumprimento dos Objetivos de Desenvolvimento Sustentável (ODS) estabelecidos na Agenda 2030 da Organização das Nações Unidas (ONU). Entre eles, movimentos que promovem uma agenda de direitos humanos dentro das organizações, como o "Elas Lideram", "Raça é Prioridade" e o Movimento Mente em Foco (que tem o objetivo de garantir que mil empresas brasileiras implementem programas estruturantes de saúde mental).
Dito isso, reafirmo: minha agenda é pautada pela inclusão e diversidade. O descrito acima reafirma esta minha postura. Portanto, nunca corroborei com um ambiente de exclusão, racismo ou violência de gênero como se supõe na presente denúncia.
O canal de denúncias do Pacto Global é gerenciado por uma empresa terceirizada e que atua de forma independente, que encaminha as queixas conforme o nível hierárquico dos denunciados ao comitê de integridade. O comitê de integridade é composto por profissionais altamente qualificados, chief compliance officers de empresas e sócios de escritórios de advocacia. Acredito na lisura e isonomia deste mecanismo. Importante destacar que todo o processo ocorre em sigilo e absolutamente nenhuma informação chega ao conhecimento de quadros como o do CEO. Me refiro a quaisquer denúncias: denúncias do passado e denúncias atuais.
Mesmo sem acesso ao teor das quais, estou absolutamente tranquilo em relação ao processo de investigação, pois tenho plena convicção de que minha conduta sempre esteve alinhada aos valores que defendo e aos princípios éticos que norteiam minha carreira.
Me preocupa, no entanto, o impacto desproporcional à reputação de pessoas sérias e dedicadas num processo interno e ainda sem conclusão. É preciso ter cuidado e responsabilidade para que se evite a instrumentalização desta pauta, resultando em uma abordagem leviana no trato de um tema delicado como este.
Posicionamento Pacto Global
O Pacto Global sempre primou pela governança e integridade, valores que orientam todas as nossas ações e decisões. Em respeito a esses princípios e comprometidos com a transparência, informamos que estamos conduzindo uma verificação independente para esclarecer a denúncia recebida em 17 de outubro.
De imediato, adotamos as medidas necessárias para garantir um processo de apuração íntegro, independente e seguro, que está sendo conduzido por um escritório de advocacia externo e supervisionado por um Comitê Especial, criado para essa finalidade.
Dando total transparência sobre os nossos canais de denúncia, nos últimos dois anos recebemos cinco denúncias relacionadas ao tema assédio moral, sendo uma em 2022 e quatro em 2023. A denúncia recebida no dia 17 contém alegações e elementos novos, que não haviam sido submetidos ao nosso canal interno no passado. Temos 100 colaboradores na nossa instituição. Respeitando a legislação, o processo de apuração de denúncias é absolutamente sigiloso para preservar a confidencialidade e a segurança de todos os envolvidos.
A verificação dos fatos seguirá com a máxima imparcialidade, rigor e sigilo. Neste momento, qualquer afirmação sobre a denúncia é prematura. A organização colocou os executivos em férias para evitar questionamentos a respeito da lisura e imparcialidade da apuração.
O desfecho desta análise permitirá o completo entendimento da questão e nossa manifestação. Desde já reiteramos o nosso absoluto compromisso com a ética e que, em caso de comprovação de atos que violem as leis ou os nossos valores e princípios norteadores, haverá pronta responsabilização dos envolvidos.
Nosso compromisso com um ambiente ético e seguro é inegociável. Somos os maiores interessados no esclarecimento do caso e não pouparemos esforços nesse sentido.
*Esta coluna foi atualizada às 16h50