A roleta russa do cancelamento

Crédito: Fast Company Brasil

Claudia Penteado 6 minutos de leitura

Durante todos os dias no Brasil, milhões de pessoas se locomovem utilizando os chamados veículos por aplicativo. Seja para viagens curtas de até 20 minutos, ou longas que cortam municípios, a possibilidade de utilizar um transporte que garanta mais segurança, privacidade e qualidade na viagem vem ganhando a preferência dos cidadãos. Somado a isso, existe a possibilidade de “rachar “o valor da corrida com até quatro pessoas – que, para quem vive com orçamento apertado em tempos de pandemia, ou gosta simplesmente de economizar, obviamente é uma mão na roda.  

Segundo estudos do Núcleo de Pesquisas em Engenharia de Transportes da Coppe /UFRJ, somente no estado do Rio de Janeiro 750 mil pessoas optam diariamente por utilizar motoristas particulares, tendo como principais empresas a 99, Uber e Cabify. Segundo projeções do estudo, 25% dos usuários dos aplicativos de corrida antes optavam pelo uso do transporte público de massa, e 75% usavam o próprio carro ou táxi para se locomover. Para se ter uma ideia, a média diária de viagens de táxi no Rio de Janeiro circula entre pouco mais de 235 mil viagens, quase três vezes menos que as projeções para motoristas de aplicativo.  A grande questão é que esses dados refletem uma realidade um pouco ultrapassada, os dados são de 2019, por tanto, antes da pandemia do coronavírus. 

Com a atual crise econômica que o país vem vivendo, um fenômeno começou a chamar a atenção de pesquisadores da mobilidade urbana. A cada dia é mais comum pessoas reclamarem do cancelamento de suas viagens por motoristas de aplicativo, sendo que no Brasil 1,4 milhão de pessoas no subemprego são entregadores ou motoristas de aplicativo (e cabe destacar que há cinco anos, esse número era de 870 mil pessoas, segundo estudo inédito do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea) sobre o impacto da Gig Economy no mercado de trabalho).

Se, em relação aos motoristas, a lógica da modalidade de serviço é a de quanto mais se transporta, mais se ganha, por que há um número expressivo de pessoas reclamando do cancelamento de suas viagens?

Durante algum tempo, quem reclamava desse fenômeno eram pessoas que moram em localidades consideradas perigosas, mas isso não era relevante. Eu mesmo já tive e tenho dezenas de corridas canceladas, às vezes faltando um minuto para o motorista chegar ao local de embarque. Inclusive fui aconselhado a tirar a minha foto do aplicativo para ver se isso diminuiria (racismo). Porém hoje, o grande debate a respeito dos cancelamentos de viagens por motoristas de aplicativo se assenta na crise econômica brasileira que tem no aumento do preço dos combustíveis uma de suas facetas mais perceptíveis.

Há ao menos três grandes fatores que provocam o cancelamento das corridas por motoristas de aplicativo. Uma das versões aponta exatamente para a questão das áreas de risco, ou seja, motoristas de aplicativo se recusam a deixar ou buscar passageiros que estejam em áreas consideradas de risco, o que por sua vez abre espaço para um novo debate sobre quem classifica a área como área de risco; então temos um preconceito latente em cima dessa opinião, que alguns casos nem é verdadeira mas sempre será  discriminatória – até porque se a região é considerada de risco, a culpa não é do usuário, são várias as questões sociais e de abandono que provocaram isso: áreas de risco e áreas de ricos.

Outra questão relevante é a segurança dos próprios motoristas. Pensando nisso, as principais empresas do segmento já utilizam ferramentas que tem por missão proteger o motorista. Segundo a empresa 99,  87% das ocorrências mais graves de violência (assaltos, furtos e agressões) têm como alvo os motoristas e não os usuários. 

Para garantir a segurança dos parceiros, a 99 vai implementar na “jornada do cliente” instrumentos de segurança para ajudar a prevenir esses casos. A metodologia pretende coletar dados que vão desde informações do passageiro ao mapeamento das chamadas zonas de risco de cada localidade. A 99 pretende implementar técnicas ligadas a reconhecimento facial – que são extremamente perigosas para a população negra devido ao racismo algorítmico. Para se ter uma ideia, em menos de duas semanas dois casos de homens negros presos por reconhecimento facial por meio de fotos tomaram conta dos noticiários, e em ambos foi confirmado o equivoco. A única coisa semelhante entre os homens presos injustamente e os verdadeiros suspeitos era a cor da pele. 

Apesar disso, a 99 vai direcionar, no momento do cadastro, o usuário para uma aba onde o passageiro irá digitalizar um documento oficial com foto, o que poderá ser feito usando a câmera do celular. As informações serão avaliadas por inteligência artificial, que confrontará a imagem com os dados de reconhecimento facial e, posteriormente, haverá uma análise humana sobre o conteúdo.

A última questão, que vem a ser a pauta do momento, é a dos combustíveis. Os motoristas estão escolhendo corridas que sejam financeiramente sustentáveis, uma vez que o preço que eles pagam para abastecer envolve uma relação de custo/benefício. Hoje, o grande debate a respeito dos cancelamentos de viagens por motoristas de aplicativo se assenta na crise econômica brasileira, que tem no aumento do preço dos combustíveis uma de suas facetas mais populares.

Num período de cinco anos, a porcentagem que mede o cálculo do ICMS sobre a gasolina caiu de 28% para 27,5%; já o imposto federal subiu de 9% para 11,3%. Isso significa que não é por conta de ações tomadas por governadores e prefeitos que o combustível está cada vez mais caro na bomba. O preço que chega à bomba é composto por múltiplos elementos e influenciado, inclusive, por fatores externos. 

Segunda a Petrobras, o preço final da gasolina é formado da seguinte maneira: 

  • 33,4% vem do custo da produção nas refinarias 
  • 11,3% dos impostos federais
  • 27,7% do ICMS
  • 16,9% da adição de etanol
  • e 10,7% da distribuição e revenda.

A Petrobras, que acabou de anunciar um novo aumento, desta vez de 7,2% no preço da gasolina nas refinarias, despertou a base Bolsonarista no Congresso, que por sua vez, erroneamente, culpou o ICMS pelas sucessivas altas no combustível. Veículos de imprensa como AFP e Piauí, no entanto, mostram que não houve nenhuma mudança significativa no imposto desde 2017 e salientam que na verdade o que subiu, no mesmo período, foi o valor do preço do barril de petróleo no mercado internacional, além de tributos federais, segundo informações da própria Petrobras e do Ministério de Minas e Energia.

Em matéria recentemente publicada no G1, a Associação dos Motoristas de Aplicativos de São Paulo (Amasp) colocou na conta da Uber o desligamento de 15 mil motoristas, ou seja, 1% de toda a frota de motoristas do país, segundo a associação. A Uber nega a quantia afirmando terem sido somente 1.600.

Em julho, o G1 já tinha chamado atenção para uma prática nova por parte dos condutores, que passaram a selecionar corridas com base nos seus gastos com combustíveis: 40% e 50% representam o gasto diário de um motorista de aplicativo. 

Só o Francisco Peixoto Neto, em um mês, cancelou 3484 viagens. Possivelmente você que me lê pode ter tido uma corrida cancelada por ele. Gostando ou não, a grande questão é que se você precisa usar um motorista de aplicativo, precisará ter muita paciência, e acostumar-se com a roleta russa do cancelamento, entendendo que a sua corrida pode ser cancelada a qualquer momento, inclusive a um minuto de distância do local de embarque. E que ela ficou mais cara por conta do reajuste de 35% para Uber, e  10% para 99. 

Enquanto o país estiver passando por incertezas políticas, má gestão econômica que provoca alta na inflação e juros, a sua vida será fortemente afetada, até na hora de tomar uma condução. Afinal de contas, como disse o Apolinho: “tudo pode acontecer, inclusive nada!”


SOBRE A AUTORA

Claudia Penteado é editora chefe da Fast Company Brasil. saiba mais