Escala 6×1 é máquina de moer sonhos
Quando o trabalho consome todo o nosso tempo e energia, limitamos nosso potencial de reflexão, aprendizado e crescimento pessoal
Uma discussão importante sobre o futuro do trabalho está ganhando força no país. A deputada federal Erika Hilton (PSOL-SP), liderando o Movimento Vida Além do Trabalho (VAT), apresentou uma proposta para o fim da escala 6x1.
A PEC (Proposta de Emenda à Constituição) que visa extinguir essa jornada já ultrapassou 100 assinaturas. Ela precisa de 171 para ser apresentada à mesa diretora da Câmara dos Deputados.
É natural que surjam protestos. Conservadores criticam o texto – embora, apenas com as assinaturas necessárias, a proposta ganhe um relator, iniciando o diálogo entre os parlamentares. Há espaço para melhorias e ajustes, como a própria Erika Hilton apontou em suas redes sociais. O que não pode acontecer é encerrar essa conversa antes mesmo de começá-la.
Principalmente quando uma oportunidade de debate sobre algo tão impactante na vida dos trabalhadores é recebida com pânico. Cenários de desastres econômicos são criados no alarmismo.
Vale lembrar que, no passado, latifundiários se opuseram à abolição da escravidão por temerem perder seu poder. Da mesma forma, previsões catastróficas foram feitas quando o 13º salário, em 1962, foi instituído.
IMPACTOS DE UMA ESCALA BRUTAL
A escala 6x1 não se trata de simples rotina laboral; é uma engrenagem que esgota as pessoas em múltiplas dimensões. Essa escala acentua a sobrecarga física e emocional, restringindo o tempo necessário para a recuperação.
“A falta de um descanso semanal prolongado impede que o trabalhador consiga uma verdadeira desconexão com o trabalho, essencial para manter a saúde psicológica", afirma Luciana Veloso Baruki, médica, auditora fiscal do trabalho há 17 anos e especialista em saúde mental e riscos psicossociais no trabalho.
Enfrentar seis dias consecutivos de trabalho significa que o único dia de folga é consumido por tarefas domésticas e responsabilidades básicas. Não resta tempo para lazer, estudo ou convivência familiar. “Isso intensifica o isolamento, o sentimento de solidão e a sensação de exclusão de ciclos sociais”, afirma a especialista.
A fadiga acumulada não fica do lado de fora da empresa. Ela acompanha o colaborador, afetando o ambiente de trabalho. "A exaustão aumenta a irritabilidade e diminui a resiliência emocional, tornando os conflitos interpessoais mais frequentes”, afirma Luciana. O resultado tende a ser um clima organizacional tóxico, onde a produtividade cai e os erros operacionais aumentam.
“Em contextos onde o diálogo é substituído por cobranças exacerbadas, surge o risco de assédio moral”, complementa a médica. A insatisfação se espalha, levando ao absenteísmo e à alta rotatividade de funcionários.
Não é difícil de ver que uma jornada laboral com folga limitada fala sobre a lógica predominante em muitos setores de priorização do lucro e das metas acima do bem-estar dos trabalhadores.
“Ao longo de minha trajetória profissional, seja nos anos em que fiscalizei práticas de assédio moral, sexual e organizacional, seja no atendimento clínico de pacientes que enfrentam as consequências dessas realidades, tenho percebido uma relação ainda muito desafiadora entre os ambientes de trabalho e o ser humano” observa Luciana.
Dessa forma, é preciso estar atento às ações de manipulação da subjetividade. Frases como “somos uma família” ou “aqui somos todos colaboradores” são comuns em ambientes corporativos que buscam criar um sentimento de pertencimento e lealdade.
“No entanto, fica evidente que essas palavras muitas vezes escondem a verdadeira natureza da relação de trabalho: subordinação e exploração econômica”, aponta a especialista.
NÃO DEIXE O SONHO MORRER
O poder de imaginar, criar e sonhar é um tema recorrente nesta coluna. Tais atividades são vitais para nosso entendimento de propósito e socialização e, quando bem cultivadas, geram impactos positivos tanto no indivíduo quanto no coletivo.
Portanto, é impossível ignorar que o descanso extremamente limitado pela jornada 6x1 afeta nossa capacidade cognitiva, minando o que nos torna essencialmente humanos.
“A exposição contínua ao estresse laboral reduz a competência do cérebro de acessar redes neurais associadas à inovação,” explica Luciana. “Sem tempo para recuperar as energias, essas pessoas perdem a criatividade e a habilidade de resolver problemas.”
é impossível ignorar que o descanso limitado pela jornada 6x1 afeta nossa capacidade cognitiva, minando o que nos torna essencialmente humanos
Poderíamos argumentar que essas são competências indispensáveis em um mercado moderno e competitivo, e de fato são. No entanto, a questão vai além dos benefícios para o mercado ou para as empresas. Trata-se de evitar que nos tornemos automatizados, presos em uma rotina que nos impede de desenvolver nosso potencial.
É sobre viver de forma plena e significativa, reconhecendo e valorizando as nuances e complexidades da existência humana. É sobre sermos mais do que nossos crachás ou títulos profissionais.
Quando o trabalho consome todo o nosso tempo e energia, limitamos nosso potencial de reflexão, aprendizado e crescimento pessoal. Perdemos a oportunidade de nos envolver em atividades que enriquecem nossas vidas, como arte, cultura, educação e relações interpessoais.
Nossos sonhos morrem. Isso não apenas empobrece a nossa experiência individual, mas também diminui a riqueza cultural e intelectual da sociedade como um todo.
BORA SONHAR
Esta semana lancei, ao lado da pesquisadora Camila Holpert e da jornalista Nay Ruiz, o Bora Sonhar, um movimento que entende que sonhar não é apenas um desejo, mas um ato político. É uma ação que requer o apoio de políticas públicas, a construção de comunidades resilientes e segurança para o autoconhecimento e a saúde mental, enfrentando as disparidades sociais e econômicas.
Nosso objetivo é resgatar esse "superpoder" de sonhar na sociedade, tanto de maneira individual quanto coletiva, a partir do Método Nonna. Desenvolvido por Camila, durante uma formação sobre compaixão na Universidade de Stanford, trata-se de processo comprovado que guia as pessoas em uma jornada de resgate de sua capacidade de sonhar, por meio de etapas que incluem a recuperação de memórias, o auto acolhimento, a despedida dos sonhos não realizados e o fortalecimento de novos desejos e objetivos.
Compreendemos que sonhos não se concretizam com o simples fechar dos olhos. Eles demandam esforço, contexto e suporte. Afinal, sonhar é, de fato, coisa séria.
A discussão sobre a jornada 6x1 nos revela que falar de sonhos vai muito além de uma busca romântica ou ingênua – é uma jornada essencial para redescobrir o que nos faz humanos. E esse belo ato não pode ser privilégio de poucos, pertencer somente àqueles que descansam graças ao conforto financeiro.
Todos merecem viver com saúde e equilíbrio, encontrar dignidade em cada dia e devanear sobre o impossível que pode virar possível. Deixamos de lado a carcaça da utopia para nomear esse processo corretamente: é uma questão de direitos humanos fundamentais.