Eternamente online: o que fazer com sua “alma digital” depois da morte?
A “alma digital” é uma réplica das expressões, atividades e decisões de uma pessoa em uma IA. Mas não é ela de verdade
Os Beatles foram indicados para o Grammy de 2025 de melhor gravação. O single inédito “Now and Then” só foi possível graças à inteligência artificial que ajudou a isolar o vocal de gravações antigas de John Lennon. Em outras palavras, os falecidos John Lennon e George Harrison competem lado a lado com Beyoncé e Taylor Swift. Com uma música inédita.
Enquanto isso, no Brasil, um pedido tem se repetido nos cartórios: “desejo não ter minha imagem, voz ou opinião replicados ou recriados por inteligência artificial”. O número de diretivas antecipadas de vontade (DAV) – orientações por escrito sobre diretrizes do que se deve fazer em caso de morte ou perda de lucidez – que tocam o tema de direitos digitais subiu de 549 por ano para 100 por mês.
São fatos que vão desafiar a humanidade na era da IA: como lidar com a vida digital após a morte?
O Código Civil brasileiro trata de direitos autorais de pessoas falecidas, mas no sentido da herança daquilo que já foi publicado. Não trata, no entanto, de criações inéditas. Nem de proteção da identidade ou da voz. Todas as coisas que a IA já pode replicar.
Isso tem levado as pessoas aos cartórios para as diretivas antecipadas de vontade e testamentos vitais. Não são os instrumentos ideais. Na verdade, estão bem longe disso. A DAV, por exemplo, foi criada para garantir que as vontades médicas sejam respeitadas caso a pessoa fique impossibilitada de opinar por doença grave ou acidente.
“Estamos criando saídas, mas precisamos de um novo direito”, diz Patrícia Corrêa Sanches, advogada e presidente da Comissão Nacional de Tecnologia do Instituto Brasileiro de Direito de Família (Ibdfam). Segundo ela, assuntos como privacidade de dados digitais no pós-morte precisarão ser mais debatidos.
Na visão da futurista Cecilia Tham, a IA cria um novo paradigma: o de que a vida pode seguir sem depender de um corpo. A CEO e cofundadora da Futurity Systems é uma futurista premiada, pioneira na intersecção de ciência, design e negócios. Um dos seus trabalhos mais recentes foi Herbie, uma planta robô que consegue andar e expressar sentimentos.
“Se começarmos a decupar esses elementos – corpo, consciência e percepção –, podemos recodificar o que significa viver ou morrer. Podemos criar novas combinações entre eles", diz. Decupar esses sentidos também chegaria a um outro conceito: alma digital.
CONHEÇA A SUA ALMA DIGITAL
A “alma digital” é uma réplica das nossas expressões, atividades e decisões em uma IA.
Conversamos por mensagens de texto e áudio, fazemos buscas online, monitoramos os passos do dia, trabalhamos na web, gravamos a nossa voz, usamos o GPS do celular, estamos conectados 24 horas por dia. Tudo isso gera registros que, quando analisados, mostram as entrelinhas do nosso comportamento.
Empresas como Eternos, StoryFile e HereAfter AI prometem recriar conversas, a voz e a linguagem das pessoas em chats. Quando essa pessoa morrer, o chat pode continuar respondendo com os mesmos maneirismos e jeito de falar dela. Mas isso não quer dizer que a IA pode “ser” você.
"As réplicas digitais podem ser uma extensão da memória coletiva, mas não são a mesma coisa que estar vivo. Elas preservam nossas expressões, mas não necessariamente quem somos", diz Mark Bünger, CTO e cofundador da Futurity Systems.
Bünger é neurocientista e nano-engenheiro, especializado em deep technology. Ele explica que os avanços da tecnologia de interface cérebro-computador (BCI, na sigla em inglês) aumentam a capacidade da “alma digital”. A IA poderá entender como o cérebro funciona e, talvez, até reter as memórias que guardamos.
Se a IA criar uma expressão original de alguém que já morreu, de quem é a autoria?
Ainda assim, existe tudo aquilo que a nossa mente não coloca para fora. Não necessariamente algo que produzimos, mas que afeta as nossas decisões. “Quando replicamos apenas a expressão, não capturamos quem a pessoa realmente é. É a persona, não o indivíduo", diz Roberto Martini, CEO da FLAGCX.
Em 2016, Martini criou a primeira música feita em parceria com inteligência artificial do mundo, intitulada “Neural”. Nesse projeto, ele concebeu uma rede neural que permitiu que o rapper Sabotage, morto há mais de uma década, produzisse canções originais novamente. Para tanto, a captação não se resumiu a suas obras, incluindo também registros familiares e indicações de como ele pensava.
Segundo Martini, a pergunta que mais surgiu durante o processo foi: isso é uma expressão original ou apenas uma emulação?
MAIS PERGUNTAS DO QUE RESPOSTAS
Se a IA criar uma expressão original de alguém que já morreu, de quem é a autoria? Se a “alma digital” pode gerar valor, quem ganha com ele?
São perguntas que o direito atual não responde. E que a humanidade tenta responder com o olhar distorcido do agora. O que, segundo Patrícia Corrêa, causa distorções.
Seria como se os irmãos Lumiére escrevessem, em 1900, que gostariam que seus filmes não fossem replicados em um cinema 3D. Eles não podiam prever a tecnologia que existiria agora.
A distorção do tempo entra na lista de perguntas ainda não respondidas, mas que precisam ser feitas. A IA generativa pode aprender e mudar conforme o tempo – e aprender com os pensamentos, em uma evolução mais rápida do que a do cérebro humano.
A futurista Cecilia Tham aponta outro desafio. “Deixaremos as almas digitais continuarem a evoluir ou deixaremos essas personas congeladas no tempo?"
A SEGUNDA MORTE
Como se proteger da eternidade? Para Martini, uma saída tecnológica seriam os smart-contracts. Por meio deles, a pessoa poderia “travar” certos atributos próprios, como a imagem ou a voz. O contrato inteligente cria regras claras e condições para o uso da identidade digital.
Ainda segundo ele, se as ferramentas continuarem da forma que estão, sem migrar para a web 3.0 ou para o blockchain – um mecanismo que facilita o registro de transações e garante a integridade dos dados – corremos o risco de entrar em um ciclo de IAs repetitivas, almas digitais sem identidade ou nuance. “Ninguém morre, mas ninguém é original ou único”, diz Martini.
As réplicas digitais podem ser uma extensão da memória coletiva, mas não são a mesma coisa que estar vivo.
Para Cecilia Tham, o caminho será a criação de novos rituais. "O conceito de ‘funeral digital’ pode surgir. Podemos ter que ‘matar’ versões digitais de alguém, quando elas já não são mais relevantes ou desejadas." Ela vê esse ritual como uma ampliação do direito de “ser esquecido” pelas plataformas digitais.
Não é difícil imaginar um cenário em que as almas digitais sejam deixadas como herança para os familiares e amigos. Como fotografias ou documentos, que passam de geração em geração. Mark Bünger lembra que, quando a câmera fotográfica foi inventada, muitos acreditavam que a foto seria capaz de “captar a alma”.
"No futuro, veremos almas digitais como vemos VHS ou álbuns de fotos antigas. As próximas gerações vão achar curioso que levamos isso tão a sério", acredita Bünger.
E você? Já pensou na vida digital que quer levar depois da morte?