Muito além de Wakanda: afrofuturismo é estratégia para inovação brasileira

Especialistas falam sobre como o movimento ajuda a construir estratégias que antecipam mudanças sociais e tecnológicas

Crédito: Freepik

Camila de Lira 5 minutos de leitura

O afrofuturismo não está só em Wakanda, país fictício dos quadrinhos e filme do Pantera Negra. Nem apenas nas músicas de Sun Ra, jazzista experimental dos anos 60 e 70.  O conceito de olhar para o amanhã a partir do protagonismo negro e da ancestralidade africana faz parte do dicionário da inovação estratégica. 

O movimento amplia o repertório e dá ferramentas para criar cenários sustentáveis e justos de futuro. Cenários estes que levam em conta exemplos não-ocidentais e não-europeus, que costumam dominar o imaginário futurista.

“O afrofuturismo é mais que uma estética ou filosofia; é uma prática que pode transformar como inovamos, criamos e lideramos”, afirma Grazi Mendes, head de diversidade da ThoughtWorks, eleita uma das 100 afrofuturistas mais influentes do mundo pela Organização das Nações Unidas. 

Olhar para outras formas de pensar tem poder transformador nos negócios. Segundo a executiva, se inspirar na filosofia ubuntu – pensamento centenário da África Subsaariana, que significa “humanidade para com os outros” – pode apoiar estratégias colaborativas e de sucesso compartilhado. 

Já a ideia do sankofa, dos povos ancestrais de Gana, Togo e Costa do Marfim, diz que é preciso “retomar o passado para ressignificar o presente e construir o futuro”. Ele abraça uma visão de tempo circular, na qual passado e futuro dialogam.

O conceito de tempo espiralar é exemplificado pela imagem do ditado iorubá que diz: “Exu matou um pássaro ontem com a pedra que jogou hoje".

 “O afrofuturismo pode nos ajudar a construir estratégias que antecipam mudanças sociais e tecnológicas, sempre conectadas a um senso de bem comum, com propósito e busca pela equidade”, diz Grazi.

Durante muito tempo, tais símbolos e filosofias não constavam nem nos livros de história, quem dirá nos manuais de inovação. Interpretações eurocentradas reduziram o conhecimento negro por séculos, taxando-o de “arcaico” e “primitivo”.  Uma das forças do afrofuturismo é mudar essa narrativa. Mostrar que a África é o continente da tecnologia, da ciência e da modernidade.

LIGAÇÃO ÁFRICA-BRASIL

Para Paulo Rogério Nunes, cofundador do Vale do Dendê, o afrofuturismo vai além de revisitar a ancestralidade. O executivo fez parte da lista de 100 afrofuturistas mais influentes do mundo e é autor do livro "Oportunidades invisíveis: Aprenda a inovar com empresas que apostam na diversidade e geram riquezas".

O afrofuturismo é também uma forma de filtrar o presente. Mais especificamente de olhar para a África como fonte de inovação, criatividade e prosperidade. “O afrofuturismo é um exercício de reflexão, de que o futuro não vai, necessariamente, passar pela Europa ou pelos Estados Unidos. O futuro está ligado à diáspora africana”, afirma.

O Vale do Dendê é uma organização baiana que fomenta o ecosssistema de inovação e empreendedorismo negro. Localizado em Salvador, o Vale do Dendê já apoiou mais de 230 empresas. Há quatro anos, é local do festival Afrofuturismo. O evento está na sua quarta edição, neste final de semana, e discute as perspectivas inovadoras do afrofuturismo na moda, no digital e na inovação.

Paulo Rogério diz que a África precisa estar nos cenários de futuro das empresas brasileiras. Além de ter países que falam português, o continente é próximo do Brasil, com características parecidas. “As empresas brasileiras pensam na América Latina como nearshore, mas a África pode ser o nearshore. Cabo Verde, por exemplo, está a quatro horas de voo de Salvador”, lembra.

O Vale do Dendê firmou parcerias com Cabo Verde no ano passado e agora faz parte da iniciativa digital do país africano. 

Olhar para outras formas de pensar tem poder transformador nos negócios.

Olhar para a África como um mercado forte continuará a fazer sentido.  Até 2050, uma em cada quatro pessoas em idade ativa do mundo será africana. Com taxas de natalidade em alta, o continente vai na contramão do resto do mundo – inclusive da Ásia. Até 2100, a expectativa é que uma em cada três pessoas do planeta tenha nascido na África Subsaariana. 

Pesquisa da Universidade de Washington mostra que a Nigéria tem potencial para ser superpotência no mundo no próximo século, já que será um dos únicos países com crescimento econômico e populacional. “O mundo corporativo precisa olhar para África com mais atenção”, aponta o executivo.

ESPECULAR E QUEBRAR ESTRUTURAS

Para outros pensadores, o afrofuturismo é apenas uma das muitas ferramentas para analisar um futuro descentralizado. É o caso do Movimento Especulativo Negro, ou Black Speculative Art Movement (BSAM). O movimento une artistas plásticos, escritores, cientistas, designers e pesquisadores de ascendência africana para criar e pensar futuros alternativos.

Dentro desses futuros alternativos existem diversos movimentos, como o futurismo quântico negro, o afropessimismo, a imaginação radical e o afrossurealismo. Por meio de uma rede internacional, o BSAM cria comunidades para discutir os cenários futuros que fazem sentido para cada localidade artística. 

Crédito: BSAM

“O futuro da diáspora africana da Filadélfia pode ser diferente de alguém que está em São Paulo”, diz Reynaldo Anderson, cofundador do BSAM. Anderson é autor do livro "Afrofuturismo 2.0" e professor da Universidade de Temple, na Filadélfia (EUA). O BSAM faz discussões fora de lugares que seriam tradicionalmente hostis para a população não-branca.

Segundo Anderson, o movimento veio como resposta a dois desafios do século 21: a aceleração tecnológica e as mudanças climáticas. São problemas complexos que afetam países de maneiras diferentes.

O BSAM capacita comunidades para reagir às propostas de futuro do Vale do Silício. A solução não virá de uma única tecnologia, criada por um grupo de bilionários, argumenta Anderson.

É preciso que mais comunidades de pessoas sonhem com o futuro para construí-lo. A arte e a tecnologia são ferramentas para promover justiça social e descolonizar a imaginação. E, uma vez imaginado e reestruturado, o futuro pode ser construído.


SOBRE A AUTORA

Camila de Lira é jornalista formada pela ECA-USP, early adopter de tecnologias (e curiosa nata) e especializada em storytelling para n... saiba mais