Neste Natal, evite comprar roupa. O planeta agradece
Cemitérios de resíduos têxteis se espalham principalmente no Sul Global. Empresas devem assumir responsabilidade, mas consumidor consciente pode ajudar
Pesquisa do Instituto Locomotiva mostra que 80% dos brasileiros desejam comprar novas roupas para si e para dar de presente nessas festas. É bem provável que esses looks não durem até o final de 2025.
De acordo com pesquisa da Fundação Ellen Macarthur, as pessoas usam uma roupa em média sete vezes antes de descartar. E só. O mundo joga fora um caminhão de lixo de itens de moda a cada segundo. São quase 100 milhões de toneladas de resíduos têxteis que se espalham por praias, cidades e desertos no Sul Global.
Países como Gana, Chile e Nigéria recebem toneladas de roupas usadas, volume diretamente ligado ao aumento de produção da indústria da moda, capitaneado pelas ultra fast fashions. Companhias como a Shein são capazes de produzir novas coleções, do design à roupa completa, em 10 dias.
Mais itens entram para a venda, mais as pessoas consomem e descartam. Tais descartes não vão a lugar algum, uma vez que quase 80% dos itens de moda vendidos no mundo são feitos de tecidos sintéticos.
Quem lida com os resíduos têxteis diariamente já entendeu que não tem como manter o mundo fashion do jeito que está. “Nos últimos 10 anos, o volume de lixo têxtil que chega em Acra [capital do Gana] aumentou vertiginosamente. Estamos nos afogando com tantas roupas que chegam. Elas acabam na natureza”, diz Liz Ricketts, cofundadora e diretora da The Or Foundation, organização que lida com reciclagem de tecidos e com moda circular na capital do Gana.
Designer e estrategista, Liz atua há 13 anos no mercado de moda circular africano. Ela trabalha diretamente com a população do Kantamanto, maior mercado de venda de roupas de segunda mão da África. Por lá, são mais de 30 mil pessoas comprando e revendendo itens.
A conta não fecha, já que a cidade, no momento, recebe 15 milhões de peças de roupas usadas por semana. Segundo a fundação que atua com justiça ambiental e sustentável da indústria de moda, 40% dos itens são descartados logo de cara. O resto acaba nas vendas do Kantamanto, que, a cada quatro meses, consegue fazer o upcycling de apenas 100 milhões de itens.
Ainda sobra muita tonelada de roupa, fruto da hiperprodução e do hiperconsumo.Em 1975, a produção de tecido por pessoa era de 8,3 quilos. Em 2022, já estava em 14,6 quilos.
No deserto do Atacama, no Chile, o “cemitério de roupas” é tão grande que pode ser visto do espaço.
Em Nairóbi, no Quênia, a situação não é diferente. O país é um dos maiores importadores de roupas de segunda mão do mundo. No ano passado, foram mais de 184 toneladas. Segundo estudo da organização Clean Up Kenya, uma em cada três dessas peças imediatamente vão para o lixo. Mais de 300 milhões de itens que foram jogados fora eram feitos de fibra sintética.
“Toda roupa vira lixo. Depois de um mês, um ano. Para onde essas roupas vão?”, questiona Batterman Simidi Musasia, fundador da organização. No país, os resíduos têxteis são tantos que acabam vendidos como combustível para pequenos comércios. Microempresários compram quilos de roupas usadas para queimar.
Mussaia atua há mais de três décadas no gerenciamento de resíduos sólidos. A Clean Up Kenya faz mutirões de limpeza em Nairóbi. No último ano, retiraram 100 toneladas apenas de resíduos têxteis da capital queniana.
No deserto do Atacama, no Chile, o “cemitério de roupas”, para onde vão os restos de tecidos e de vestimentas, é tão grande que pode ser visto do espaço.
Um dos trabalhos da Or Foundation, em Acra, são os processos de limpeza semanais. No começo do ano, 10 toneladas de resíduos foram retiradas das areias e do mar da capital ganense. Nos últimos meses, o número subiu para 20 toneladas. Liz comenta que agora faltam caminhões para fazer o transporte de tanto lixo.
TRANPARÊNCIA VOLTA À MODA
Mas, por onde começar? Transparência. A indústria de moda produz entre 100 bilhões e 150 bilhões de peças por ano. O número não é preciso porque boa parte das marcas não divulga o quanto produz, apenas o quanto gera em vendas.
A Or Foundation lançou, no ano passado, a campanha “Speak Volumes”, na qual pede para marcas divulgarem o quanto produzem. A organização lança todo o mês o índice das marcas que mais aparecem em suas limpezas das praias em Acra. “Essa não pode ser uma conversa emocional, precisa ser racional – e com dados”, diz a especialista.
No Brasil, algumas iniciativas como o Índice de Transparência na Moda, que tenta compreender como grandes marcas estão contribuindo para acentuar ou mitigar problemas ambientais, é publicado anualmente pelo instituto Fashion Revolution. Uma das especialistas que ajudou a construir este indicador é a designer, pesquisadora e cofundadora do Instituto Febre, Eloisa Artuso.
Eloisa está há mais de 20 anos no mercado da moda. Ela conta que existem vários pontos da indústria que ainda não são esclarecidos, como o modelo de agricultura que fornece os tecidos ou a cadeia do pós-compra. “Ser transparente não é só mostrar o que é bom ou o que evoluiu, mas também mostrar o que precisa ser feito”, afirma.
A gigante do mercado de ultra fast fashion Shein publica um relatório de sustentabilidade há três anos. Embora sem dizer o quanto produz, ela mostra que houve aumento nas emissões de gás carbônico nos últimos três anos. Na verdade, a companhia dobrou a quantidade de emissões entre 2022 e 2023.
CONTÉM POLIÉSTER
Do portfólio total da Shein, que conta com pouco mais de 600 mil peças, 75,7% são feitas de poliéster e 2,4% são feitas de poliamida. Os tecidos sintéticos tornam a produção mais barata e são produzidos de maneira mais rápida.
Dados da Organização das Nações Unidas mostram que 60% das compras feitas no mercado de moda são de roupas feitas de materiais sintéticos, como poliéster, acrílico e nylon. Tecidos sintéticos são responsáveis por 35% dos microplásticos que poluem os mares no mundo todo.
Nas praias de Acra, nove entre 10 roupas contêm fibras sintéticas. Segundo Liz Ricketts, a cidade tem 20 vezes mais poluição por microplástico do que outras regiões do país. O problema do poliéster não está só em quando ele é deixado na natureza, mas no seu manuseio.
O poliéster é um tecido que impacta negativamente toda a cadeia. “Ele vira petróleo no rio, ele não faz bem para a nossa pele. Ainda não existem soluções tecnológicas para fazer a roupa desaparecer sem microplástico, sem causar danos”, explica Alexandra Farah, especializada em moda, tecnologia e sustentabilidade que estudou no Fashion Institute of Technology (FIT), em Nova York.
O algodão, visto como a escolha mais sustentável, não é sempre o produto de menor impacto. No Brasil, quarto maior produtor mundial da fibra, o algodão é a quarta cultura que mais consome agrotóxicos – 10% do total. Além disso, sua produção exige grandes áreas de cultivo.
boa parte das marcas de moda não divulga quantas peças produz por ano, apenas o quanto gera em vendas.
De acordo com o relatório Fios da Moda, da Modefica em parceria com a Fundação Getúlio Vargas, o algodão gera 50% de desperdício e de resíduos têxteis; o poliéster, 29%. “Precisamos de diversidade de matéria-prima, mas essa diversidade não vai chegar agora”, diz Alexandra.
Elisa Artuso comenta que existem pesquisas para a criação de fibras têxteis a partir de resíduos orgânicos, todas ainda em fase inicial. Os tecidos mais inovadores que existem estão em fase de análise, não compatíveis com a velocidade e o volume de produção das gigantes da moda.
A designer aponta para a questão do preço. Tecidos mais tecnológicos, que usam menos recursos, vão custar mais caro em um primeiro momento. “A empresa é responsável pelos produtos que coloca no mundo. Ela é que deveria fazer esse investimento inicial e deixar o preço acessível para os consumidores”, diz.
O LOOK SUSTENTÁVEL
Mas, e agora? Os especialistas são unânimes em dizer que a mudança não é uma responsabilidade apenas do consumidor. As ações para mudança estrutural dependem de muitos segmentos. “O indivíduo é uma gota d'água no oceano”, diz Batterman, da Clean Up Kenya.
Na África, Bateman e Liz pressionam governos de países europeus para dar melhor fim aos resíduos têxteis. Se já existem regras para o descarte de plástico, é preciso estabelecer regras também para roupas.
Apesar disso, há como contribuir para minimizar o impacto. Consumir menos é o primeiro passo. O outro é aumentar a vida útil da roupa. De acordo com pesquisa feita pela organização não governamental britânica WRAP, utilizar um item de vestuário por mais de nove meses já reduz a pegada de carbono da peça em 30%.
Para Liz, é preciso estimular o “olhar sustentável”. “São coisas como saber costurar, apoiar costureiros locais, consumir menos e observar o tecido. Tudo isso gera uma relação mais saudável com a moda”, afirma.
Se continuarmos nesse ritmo, até 2030 o mundo estará gerando mais de 148 milhões de toneladas de resíduos têxteis por ano, um salto que os ecossistemas não têm tempo para absorver. O impacto já está à nossa porta.