Como a tecnologia virou uma religião e por que devemos voltar a ser agnósticos

A tecnologia adquiriu um caráter religioso que ameaça nos transformar em servos devotos de uma perigosa agenda das big techs

Crédito: akinbostanci/ Getty Images

Greg Epstein 5 minutos de leitura

A tecnologia mudou de papel. Antes, era apenas uma ferramenta que as pessoas usavam para melhorar e fortalecer a humanidade. Hoje, ela adquiriu um caráter religioso que ameaça nos tornar servos devotos de uma perigosa agenda das big techs.

Greg Epstein é capelão da Universidade de Harvard e do Instituto de Tecnologia de Massachusetts (MIT), onde orienta alunos, professores e funcionários sobre questões éticas e existenciais a partir de uma perspectiva humanista. Ele próprio se define como um “ateu agnóstico humanista”.

A seguir, Epstein compartilha cinco insights do seu novo livro, “Tech Agnostic: How Technology Became the World’s Most Powerful Religion, and Why It Desperately Needs a Reformation”. (Agnóstico tecnológico: como a tecnologia se tornou a religião mais poderosa do mundo e por que ela precisa urgentemente de uma reforma)

1. A tecnologia ocupa agora um papel em nossas vidas que vai além de qualquer indústria

A tecnologia passou a se parecer mais com uma religião. Tendemos a dizer que a tecnologia é "uma indústria", mas essa descrição não faz sentido, pois não há mais nenhuma grande indústria que não seja uma indústria tecnológica.

Se uma nova religião surgisse e conquistasse bilhões de seguidores – e dólares – da mesma forma que o entusiasmo atual por IA, redes sociais e tudo relacionado ao digital, se todos ao seu redor começassem a rezar ou adorar em um altar com a mesma frequência e fervor com que nos curvamos diante das telas, certamente nos questionaríamos se essa nova crença estaria exercendo uma influência excessiva sobre nossas vidas.

2. As big techs são dominadas por ideias estranhas

A tecnologia se tornou uma parte essencial do nosso dia a dia e as grandes empresas que as desenvolvem estão sendo dominadas por algumas ideias bastante curiosas. Muitas delas ideias, no entanto, têm uma natureza surpreendentemente teológica. 

Um exemplo disso é o Way of the Future (Caminho do Futuro), uma religião fundada por Anthony Levandowski, ex-engenheiro de IA do Google e da Uber. Levandowski acumulou centenas de milhões de dólares antes de ser condenado por roubo de propriedade intelectual contra o Google, mas escapou da prisão após receber o perdão presidencial de Donald Trump.

Créditos: StudioM1/ imaginima/ iStock

Ao registrar sua nova igreja, ele disse à Receita Federal norte-americana que sua fé se baseava na “realização, aceitação e adoração de uma divindade baseada em inteligência artificial, desenvolvida por meio de hardware e software de computador”.

Ele acredita que os humanos estão criando algo que logo se tornará um deus, que, assim como o Deus ciumento da Bíblia, ficará irritado ao perceber que não começamos a adorá-lo antes.

Eu gostaria que a pesquisa para o meu livro não tivesse revelado inúmeros exemplos semelhantes, como a Singularidade. De acordo com Ray Kurzweil – o legendário profissional de IA que ajudou a desenvolver o Gemini, do Google – a Singularidade é o suposto momento no qual a tecnologia nos permitirá superar a morte, tornando a vida humana significativa. Isso contradiz milhares de anos de filosofia secular e religiosa ao sugerir que a vida não foi significativa até agora.

3. Uma nova religião tradicional dominada por ideias estranhas seria questionada

Muitas das ideias mais estranhas sobre tecnologia que exploro no livro estão diretamente ligadas ao movimento de bilhões de dólares.

O conceito de paraíso é algo genuinamente belo e significativo para muitas pessoas. O problema é que, nas mãos de líderes extremistas ou totalitários, pode ser usado para justificar praticamente qualquer coisa: “a sociedade não é justa nem equitativa. Mas pare de reclamar e obedeça às minhas ordens”, dizem tais governantes. “Se você obedecer, irá para o paraíso. Caso contrário, irá para outro lugar.”

Dizemos que a tecnologia é "uma indústria", mas não há mais nenhuma grande indústria que não seja tecnológica.

Essa retórica teológica clássica aparece em um ensaio de 2003 chamado “Astronomical Waste: The Opportunity Cost of Delayed Technological Development” (Resíduos astronômicos: o custo de oportunidade do desenvolvimento tecnológico tardio), de Nick Bostrom, ex-professor da Universidade de Oxford e uma das figuras mais reconhecidas no campo da IA até ser forçado a fechar o Future of Humanity Institute (Instituto para o Futuro da Humanidade), em abril de 2024. 

No texto, Bostrom argumenta que, a cada ano em que não se desenvolve tecnologia avançada e a colonização do universo é adiada, há um “custo de oportunidade” correspondente: trilhões de vidas digitais hipotéticas que a tecnologia poderia gerar no universo. Ao fazer isso, você pode estar cometendo genocídio.

O influente investidor e bilionário de tecnologia Marc Andreessen (mais conhecido por ser um dos fundadores da Netscape) defende a mesma ideia em seu famoso Manifesto Tecno-Otimista. de 2023.

Ele escreve: “Acreditamos que qualquer desaceleração da IA custará vidas. [...] Mortes que poderiam ser evitadas pela IA que foi impedida de existir são uma forma de assassinato.”

Em outras palavras, se você não investir fortunas agora em inteligência artificial, estará negando o nascimento de bilhões de “pessoas” de IA em um futuro celestial tecnológico.

Diante de uma alegação como essa, fica mais difícil levantar questões urgentes, como a enorme pegada de carbono da tecnologia no contexto da crise climática global ou a desinformação prejudicando a democracia. Essa é a agenda por trás de grandes crenças como o “paraíso tecnológico”.

4. Precisamos de uma Renascença do agnosticismo

Uma das maiores bênçãos que o humanismo cético pode oferecer a um mundo cheio de certezas tecnológicas, no qual os chatbots de IA frequentemente dão respostas e conselhos sem sentido, é o valor de admitir que não sabemos as respostas.

O agnosticismo paciente e reflexivo pode ser mais demorado, mas ajuda a encontrar melhores respostas para as perguntas mais difíceis da vida. Nossa sociedade precisa se orgulhar mais daquilo que minha amiga Lesley Hazleton chama de “conforto espiritual em não saber”.

5. A tecnologia deve ser apenas uma ferramenta – nada mais

Existe uma beleza profunda que vale a pena defender: reconhecer – e até celebrar – nossas limitações, imperfeições e mortalidade. Nossa capacidade de amar, embora falha, é valiosa e resiliente. Precisamos devolver à tecnologia o status de ferramenta, colocando-a a serviço da nossa humanidade.

Este artigo foi publicado originalmente na revista “Next Big Idea Club” e reproduzido com permissão. Leia o artigo original.


SOBRE O AUTOR

Greg Epstein é capelão humanista no Instituto de Tecnologia de Massachussets (MIT) e na Universidade de Harvard. saiba mais