Sob Trump, agência ambiental dos EUA pode usar a ciência para afrouxar regras
“Incerteza” é um termo científico importante que o primeiro governo Trump usou para promover a desregulamentação, principalmente de produtos químicos
As questões ambientais não estiveram presentes na campanha presidencial dos EUA de 2024, mas as ações do primeiro governo do presidente eleito Donald Trump e suas escolhas de liderança para o próximo governo nos dão algumas pistas do que pode estar por vir.
Algumas ações serão claras. Mas a história sugere que seu próximo governo também pode tentar distorcer a linguagem da ciência – se apropriando de termos como transparência, ciência cidadã e incerteza – para enfraquecer as proteções ambientais e de saúde e estabelecer regulamentações mais favoráveis ao setor.
Essas ideias surgiram durante o primeiro governo Trump e em agendas conservadoras, como o Projeto 2025, elaborado por ex-funcionários da administração Trump e várias pessoas que ele escolheu para sua próxima administração. Durante a campanha, ele se distanciou do projeto, mas agora afirma concordar com muitas partes dele
Acompanhei de perto o primeiro governo Trump como pesquisador envolvido na Environmental Data & Governance Initiative (Iniciativa de Governança e Dados Ambientais), ou EDGI. O grupo foi fundado em 2016 para documentar os esforços de Trump para desmantelar a Agência de Proteção Ambiental (EPA, na sigla em inglês).
Durante o primeiro governo de Trump, arquivamos conjuntos de dados climáticos e ambientais usados por cientistas, defensores e formuladores de políticas que estavam preocupados com a possibilidade de essas informações serem ocultadas pelo governo.
A EDGI também entrevistou funcionários da agência que estavam enfrentando pressão política e explicou o possível impacto das mudanças nas políticas e nas regras.
Confira a seguir três maneiras pelas quais o segundo governo Trump deve tentar usar a linguagem da ciência para redigir políticas que pareçam benéficas, mas que podem ter efeitos profundos sobre a saúde ambiental.
1. “Reforçar a privacidade” para obstruir o uso de dados públicos de saúde
Quando você ouve palavras como “transparência” ou “código aberto”, elas provavelmente soam positivas – a ideia é que todas as partes possam ser vistas e verificadas. Mas quem gostaria que seus registros de saúde fossem abertos para qualquer pessoa ver?
A privacidade dos registros de saúde foi o centro de um debate sobre uma política criada pelo primeiro governo Trump chamada "Fortalecimento da transparência na ciência fundamental subjacente a ações regulatórias significativas" – ou a regra da “ciência secreta”. Ela teria impedido o governo de considerar pesquisas importantes sobre saúde ao estabelecer limites de poluição.
Décadas de dados de saúde coletados de pessoas em todo o país mostraram como a poluição do ar proveniente de usinas de energia e outras fontes pode contribuir para o câncer e outras doenças. Esses dados forneceram as evidências para as regulamentações que limparam o ar e a água do país para um ambiente mais saudável.
O Projeto 2025 propõe, entre outras coisas, redefinir a composição dos conselhos consultivos da EPA.
Mas os dados brutos desses estudos não podem ser tornados públicos porque envolvem registros pessoais de saúde. A regra que a EPA finalizou nas últimas semanas do primeiro governo Trump exigia que a agência desse menos consideração a estudos cujo conjunto de dados subjacente não estivesse publicamente disponível. Um tribunal anulou a regra em 1º de fevereiro de 2021.
Acredito que a EPA de Trump tentará novamente exigir que as regras da agência tenham como base dados brutos publicados. A agenda do Projeto 2025 exige que a “verdadeira transparência” seja uma característica definidora da EPA, incluindo “o estabelecimento da ciência de fonte aberta”.
Isso limitaria o uso de dados privados de saúde ou dados cujo uso é licenciado por empresas. Também dificultaria o desenvolvimento de regras de proteção à saúde pública.
2. Aumentar o escrutínio público da EPA
O autor do capítulo do Projeto 2025 sobre a EPA foi Mandy Gunasekara, que atuou como chefe de gabinete do administrador da EPA de Trump no primeiro governo. Além da transparência, Gunasekara apresentou a “ciência cidadã” como uma forma de “mobilizar o público para submeter a ciência da agência a um maior escrutínio”.
Quem se beneficia com a “mobilização do público” para examinar a ciência da EPA é quem tem acesso às informações e aos recursos para participar. Os setores ricos e os interesses privados podem ganhar mais voz, enquanto as comunidades mais afetadas pela poluição permanecem marginalizadas, principalmente se o governo dificultar o acesso à ciência da EPA.
a melhor ciência disponível sobre produtos químicos é geralmente inconclusiva.
O Projeto 2025 também propõe redefinir a composição dos conselhos consultivos da EPA. Esses conselhos levam em conta feedback da indústria, do meio acadêmico e das comunidades.
Ações semelhantes durante o primeiro governo Trump reduziram o número de acadêmicos e representantes de organizações não governamentais nesses conselhos, enquanto aumentaram o número de consultores da indústria.
3. Uso da incerteza para evitar a regulamentação
Incerteza é outro termo científico relevante que o primeiro governo Trump usou para promover a desregulamentação, principalmente de produtos químicos.
Alguns produtos podem não causar danos de fato até atingirem um determinado limite. Na visão da indústria química, isso significa que a postura do “é melhor prevenir do que remediar” está errada. Em vez disso, segundo o setor, a regulamentação de produtos químicos deve se basear na melhor ciência disponível.
Entretanto, a melhor ciência disponível sobre produtos químicos é geralmente inconclusiva. Na ausência de uma estratégia de precaução, o argumento do setor para a “melhor ciência disponível” pode, na verdade, significar menos justificativas para a regulamentação.
O Projeto 2025 propõe que, em seu primeiro dia no cargo, Trump emita uma ordem para "rejeitar modelos predefinidos de precaução e fatores de incerteza" que "levam a decisões falhas e opacas." As consequências podem incluir análises da EPA que subestimem os riscos de produtos químicos tóxicos, como no caso dos PFAS.
Este artigo foi republicado do "The Conversation" sob licença Creative Commons. Leia o artigo original.