Um brinde à ficção!
Não está fácil erguer o copo atualmente. Eu sabia, quando estreei esta coluna mês passado, que era arriscado usar um formato tão otimista no Brasil de 2021. Então recorro aos meus amigos próximos nessa hora de travessia.
Levantem as taças: eu quero fazer um brinde aos livros de ficção!
Vou começar com uma história pessoal, como pedem os bons brindes. Cresci com meus pais permitindo que eu e meus irmãos lêssemos tudo o que quiséssemos, sem qualquer obstáculo. Toda sexta, a gente caminhava até a Status, uma livraria na Savassi, e fazia a festa. Meu irmão mais velho comprava revistas (ele é responsável direto pela minha carreira no jornalismo) e eu comprava obras baratas de literatura infanto-juvenil, em que a heroína era sempre ruiva e com sardas. Talvez nem todas fossem ruivas, mas era assim que eu imaginava. Ruiva, de sardas, corajosa, dedicada a uma missão. Eu queria muito ter uma amiga como aquela menina! Um dia cheguei na aula de balé e dei de cara com a Fernanda. Ela era ruiva, de sardas, corajosa, com uma capacidade natural de atrair a atenção de todo mundo. Não passou muito tempo e não tive dúvidas: escrevi uma carta pra ela dizendo “você é minha melhor amiga”. A Fernanda conta que não entendeu, porque mal nos conhecíamos, mas achou legal. Éramos vizinhas e então começamos a brincar juntas. Eu tinha 11 e ela 10, a gente morava a uns 10 quarteirões de distância e realmente se dava bem. Éramos as duas filhas únicas entre dois irmãos, éramos boas alunas, gostávamos de desafios de todo tipo. Viramos melhores amigas e, pelos últimos 30 anos, temos sido uma presença fundamental na vida uma da outra.
Ao imaginar, somos capazes de realizar.
Penso que essa é uma das melhores habilidades que podemos colocar em prática nesse momento. Estamos precisando ficcionalizar. O mundo que existia já não é mais. Mesmo os mais céticos já sabem que nada mais ficará igual ao nosso redor. Que bom. A vida é movimento, as coisas se transformam, os ciclos existem e a jornada de vida-morte-vida é a única certeza que dá pra ter. Ali nos anos 80, enquanto eu crescia com pais que admiravam quem era capaz de erguer coisas grandes, sempre e cada vez maiores, a ideia era que a gente pudesse ser capaz de diminuir as desigualdades. Os que concentram mais teriam capacidade de distribuir mais. Hoje, sabemos que esse projeto precisa de mudanças. Ainda não há certezas sobre como conciliar as verdades humanas com um sistema que produz maior igualdade (eu aposto num caminho com alta distribuição e alta responsabilidade individual), mas já ultrapassamos a ideia de que não há melhorias robustas necessárias.
Agora é preciso imaginar.
E imaginar a partir de nossos desejos mais verdadeiros. Uma vez, por causa de uma reportagem para a Superinteressante, entrevistei o Fernando Gabeira e ele me disse: “O governo tem que tratar as pessoas como elas são. E não como ele gostaria que elas fossem.” Vale para o governo, vale para as lideranças de qualquer área.
Nossa vida, nossa mente, nossos sentimentos não são sempre virtuosos. Eu sei que todos nós gostaríamos de ser melhores do que realmente somos. Criamos o Paraíso, os Anjos, os seres iluminados e perfeitos. Que bom. Mas somos também o Inferno, os demônios, as sombras que imaginamos. Essa ambivalência está dentro de cada um de nós, o tempo todo, a vida toda, a todo instante.
Na literatura, podemos ver isso com muita clareza. Não há personagens reais que não nos mostrem as profundezas mais humanas.
Levanto minha taça para pedir que você leia uma obra de ficção. Nas próximas 4 semanas, deixe de lado os livros de gestão, os que trazem fórmulas prontas, e vá se enveredar por seus labirintos morais (se precisar de sugestão, vá de Crime e Castigo e Torto Arado). Quando a gente se olha no espelho, fica mais fácil assumir responsabilidades, as individuais e as coletivas. E, assim, fica mais fácil cumprir a missão que temos: imaginar e realizar.
Este texto é de responsabilidade de seu autor e não reflete, necessariamente, a opinião da Fast Company Brasil