A urgência de sermos bons ancestrais

A pergunta não deveria ser se os jovens podem estar online, mas como estamos construindo os mundos digitais que eles vão habitar

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Priscila Freitas 5 minutos de leitura

Certa vez, em um retiro, aprendi uma prática de liderança que nunca esqueci. Antes de qualquer decisão, os líderes mais experientes iriam se reunir em círculo, e ao centro, acenderiam uma chama – batizada de a “chama das crianças”.

Essa chama estaria ali para representar todas as crianças, humanas e não humanas, das próximas sete gerações, durante a tomada de decisão. A chave dessa prática é dar ênfase à responsabilidade dos líderes: decidimos e agimos não por nós, mas por elas.

Voltei a pensar nesse ensinamento ao observar o mundo digital que estamos construindo.

Sonhamos com a internet como uma revolução de acesso e possibilidades. Em 1996, o texto "A Declaration of the Independence of Cyberspace" (Uma declaração de independência do ciberespaço), do ativista digital John Perry Barlow, imaginou que o mundo digital – em vias de ser criado, na época – poderia se tornar um ambiente verdadeiramente coletivo, justo e mais humano, baseado em dinâmicas próprias que não iriam “replicar” mazelas do mundo até então.

Mas, em 2025, estamos enfrentando os desafios de um ecossistema digital carregado das complexidades e conflitos éticos da nossa própria civilização, e que vem gerando impactos consideráveis nas relações humanas, afetando principalmente os mais jovens, para quem a participação online não é uma possibilidade e sim uma condição.

A série "Adolescência", da Netflix, capturou as emoções de muitas pessoas ao retratar adultos impotentes diante de filhos à deriva, sem ritos de passagem claros, em um ambiente digital que dissolveu a autoridade de pais e tutores.

"Adolescência" (Crédito: Netflix)

Não é só ficção. De acordo com dados de uma pesquisa do Pew Research Center, 46% dos adolescentes nos Estados Unidos disseram estar online “quase constantemente”, com uso predominante de smartphones. Esse número dobrou em menos de 10 anos.

Em 2017, o Fundo das Nações Unidas para a Infância (Unicef), por meio do relatório " Children in a Digital World", já estimava que jovens abaixo de 18 anos poderiam representar um terço dos usuários de internet de todo o mundo. O estudo apontava que isso incentivaria uma “cultura do quarto”, com acessos cada vez mais privativos e cada vez menos supervisionados.

Assim como no romance de ficção científica "O Fim da Infância", de Arthur Clarke, criamos um mundo no qual os jovens evoluem tão rápido que os adultos já não conseguem compreendê-los. Só que, agora, a ruptura não veio do espaço, muito menos de repente. Veio do digital e vem sendo construída ao longo de décadas, para chegar ao ponto que estamos hoje.

É preciso construir ativamente o mundo do qual crianças e adolescentes vão participar.

Os sintomas culturais e sociais desse cenário são um alerta: precisamos rever, urgentemente, como estamos projetando os mundos nos quais os jovens participam e realmente refletir sobre qual a qualidade da nossa própria participação.

Ainda de acordo com a Unicef, no relatório "The Future of Childhood in a Changing World"(O futuro da infância num mundo em transformação), o avanço das tecnologias é uma das megatendências que mais vai impactar o futuro da infância até 2050.

Precisamos considerar que as tecnologias digitais trazem risco e também oportunidades para aprendizado, acesso e atuação em temas que tocam as suas comunidades. Isso se intensifica se pensarmos nas plataformas do futuro – especialmente as que vão utilizar inteligência artificial e neurotecnologia, o que pode influenciar experiências de aprendizagem, saúde e até mesmo socialização e inclusão.

RESPONSABILIDADE SOCIAL E O FUTURODA INFÂNCIA

A série documental "A Extraordinária Vida de Ibelin", também da Netflix, revela esse potencial de forma tocante. Após a morte de Mats Steen, um jovem com doença degenerativa, seus pais descobriram que ele levava uma vida social profunda e cheia de nuances no mundo virtual de World of Warcraft. Sob o avatar “Ibelin”, Mats construiu amizades profundas, impactou vidas e criou memórias afetivas, em um universo próprio que seus pais desconheciam.

Ainda que em duas polaridades opostas desse espectro, o que "Adolescência" e "Ibelin" têm em comum é o retrato do que acontece quando adultos não conseguem compreender e interagir com a vida digital dos jovens e a importância de se manter essa interação ativa e presente. Não basta dizer “a internet não é lugar para os jovens”. É preciso construir ativamente o mundo em que eles irão participar.

"A Extraordinária Vida de Ibelin" (Crédito: Netflix)

A iniciativa global Responsible Innovation in Technology for Children (Inovação responsável em tecnologia para crianças) aponta caminhos para que experiências digitais positivas possam ser inclusivas, seguras e participativas. As lideranças podem atuar fortalecendo a proteção e a governança de dados, criando e disponibilizando mecanismos de socialização seguros e que favoreçam a participação nas plataformas, e desenvolvendo experiências interativas que possam favorecer aspectos de aprendizagem.

É essencial garantir que os jovens tenham participação nesse processo e nos ajudem a definir os parâmetros de experiências que possam ser positivas para eles – e, por consequência, melhorem a internet como a conhecemos.

A pergunta que me faço, e que proponho que cada um de nós possa fazer, é: como podemos garantir que as futuras gerações terão um ambiente digital seguro e inclusivo? Como podemos moldar os mundos digitais com a “chama das crianças” ao centro, garantindo que cada decisão tecnológica considere o bem-estar e o futuro da infância?

Essas são perguntas complexas, mas não estamos em tempos fáceis, de respostas óbvias. O que precisamos é sustentar a capacidade de aprofundar cada vez mais a discussão.

Precisamos reconhecer que o digital não é um mundo paralelo do caos. É parte do tecido social em que esses jovens vão aprender, amar, errar e decidir quem serão. E, com base nisso, definir os fundamentos que levarão à próxima versão da internet.


SOBRE A AUTORA

Priscila Freitas lidera a área de inovação corporativa da Nestlé Brasil e pesquisa os impactos da tecnologia na cultura, no bem-estar ... saiba mais