Um Brasil original para um mundo em crise
Eduardo Giannetti nos convida a olhar para o país como possibilidade de futuro e um novo modelo para o desenvolvimento

Em tempos de ameaças ambientais, crise de saúde mental e desespero social, o Brasil pode ter um papel original e necessário no mundo. Essa foi a provocação do economista e filósofo Eduardo Giannetti da Fonseca, em recente fala no evento que marcou a celebração de 10 anos do KES, plataforma de tecnologia, comportamento e criatividade.
Giannetti propôs algo raro: pensar nosso país não como um eterno aprendiz do Ocidente, mas como portador de uma promessa inédita para o futuro da humanidade.
Vivemos, ao que tudo indica, uma crise civilizatória. Diante disso, é inevitável encontrar um outro caminho, uma nova utopia necessária, que não passa necessariamente pelas nações que lideraram a Revolução Industrial, nem pelas métricas do PIB, crescimento a qualquer custo ou da produtividade sem pausa.
Talvez esse novo rumo esteja, justamente, no Brasil, com toda sua complexidade, suas contradições e também seus valores originais. O país que há séculos é retratado como “atrasado” pode ser, na verdade, uma promessa: a de uma sociedade que não trocou a alma pelo ouro, que não abriu mão da alegria e do afeto em nome da performance desenfreada.
DESERTOS EXTERNOS E INTERNOS
Inspirado pela encíclica ‘Laudato si', do Papa Francisco, Giannetti destacou uma frase que resume nosso impasse: “os desertos externos aumentam porque os desertos internos se tornaram tão vastos.”
De um lado, o deserto externo é a crise ambiental, escancarada pelas mudanças climáticas e pela desigualdade brutal: um bilhão de pessoas no topo da pirâmide de consumo são responsáveis por metade das emissões de CO₂, enquanto os 3,5 bilhões mais pobres arcam com apenas 5%, sendo os mais vulneráveis às consequências.
De outro, a grande ameaça do mundo moderno é o deserto interior, o que Giannetti chamou de crise da ecologia psíquica – um mal-estar coletivo profundo que se espalha pelas sociedades e não só afeta as esferas emocionais e mentais dos indivíduos, mas também as relações sociais e a conexão com a natureza. Trata-se do desânimo, da solidão e da perda de sentido que caracterizam o nosso tempo.
Como lembrou Giannetti, nos países mais ricos, uma em cada cinco pessoas em idade produtiva enfrenta transtornos mentais a cada ano. Segundo o economista britânico Richard Layard, a infelicidade causada por distúrbios como depressão e ansiedade supera, com folga, os impactos negativos da pobreza, do desemprego e até de doenças físicas.

Mas talvez o dado mais chocante sobre a crise de bem-estar atual venha do epicentro do progresso ocidental. Nos Estados Unidos, um jovem homem branco de 18 anos tem hoje mais chances de morrer antes dos 50 do que um jovem da mesma idade em Bangladesh.
A causa? “Mortes por desespero”, um conceito que inclui suicídio, overdose, alcoolismo e outras formas de entorpecimento frente à falta de perspectiva. Só as overdoses por opioides já matam mais do que toda a violência urbana brasileira.
As duas crises – externa e interna – se retroalimentam. O colapso ambiental e o colapso psicológico são frutos do mesmo modelo civilizatório: uma lógica de crescimento desenfreado, competição implacável e desconexão do essencial.
UM BRASIL ORIGINAL E DIGNO DE SER SONHADO
Diante desse cenário, onde entra o Brasil? Para Giannetti, nossa força está em aspectos que muitos tratam como fraquezas: nossa resistência. Enraizada na nossa história e nas formas de vida que atravessam o país: o legado africano, a ternura portuguesa, a imaginação indígena.
O Brasil conservou valores pré-modernos que o Ocidente utilitarista abandonou: a espontaneidade, o calor humano, a alegria imotivada, a capacidade de celebrar a vida sem necessidade de produtividade constante. A convivência com o outro, o tempo vivido com menos urgência, o valor dos afetos. Uma maneira de estar no mundo que não nega a dor, mas se recusa a perder a alegria – essa alegria que, no Brasil, persiste mesmo diante da pobreza e da violência.

Não se trata de romantizar os desafios profundos do país. É preciso primeiro resolver nossos problemas básicos – educação de qualidade, infraestrutura digna, justiça social. Mas também abraçar sem medo nossa originalidade cultural. E reconhecer que a força brasileira pode estar justamente no que o mundo ocidental desaprendeu: a convivência com o diverso, a valorização do comum, a leveza que não é fuga, mas nossa forma de resistir.
O que está em jogo aqui é mais do que política ou economia. É um modelo de vida. O Brasil, com sua espontaneidade, calor humano e intensidade afetiva, ainda resiste – por sorte ou por teimosia – ao tecno-consumismo utilitário que engole o planeta.
TUPI AND NOT TUPI
Em sua fala, Giannetti invocou o espírito antropofágico de Oswald de Andrade: "Tupi or not Tupi". E propôs uma resposta: "Tupi and not Tupi", sermos nós mesmos, mas sem nos fechar ao mundo. Integrar, mas sem perder a nossa essência.
O Brasil que ele sonha é um país em que a alegria seja mais do que um estado de espírito passageiro, seja estrutura. Uma nação em que trabalhar não signifique abdicar da vida, em que investir no futuro não implique abrir mão do presente. Uma sociedade que se desenvolva sem perder os vínculos afetivos, que reconheça na sua cultura uma fonte legítima de valor e potência.
O Brasil, com sua espontaneidade, calor humano e intensidade afetiva, ainda resiste ao tecno-consumismo que engole o planeta.
Nosso chamado não é imitar os padrões ocidentais de sucesso que se provaram ineficientes. É justamente o contrário: mostrar ao mundo uma alternativa onde o lúdico, o afetivo e o comunitário sejam centrais. Onde a vida seja mais importante que a corrida armamentista do consumo.
Em tempos de crises entrelaçadas, o Brasil não precisa ser uma cópia malfeita do Ocidente. Pode, e deve, ser um laboratório vivo de uma nova civilização.
Essa utopia, longe de ser ingênua ,talvez seja a mais necessária do nosso tempo. Ela propõe uma civilização brasileira que não se envergonha de sua originalidade. Que se entende como capaz de depurar o essencial e devolver ao mundo uma nova ideia de futuro: mais gentil, mais sensível, mais humano.
A pergunta é: teremos coragem de acreditar em nós mesmos?