Na era da IA, mais do que nunca temos que proteger o futuro do trabalho humano

Com os avanços da inteligência artificial, empresas precisam fazer uma escolha decisiva sobre o futuro do trabalho e da sociedade

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Faisal Hoque 6 minutos de leitura

Poucos períodos da história moderna foram tão instáveis e imprevisíveis quanto o que vivemos hoje. A ordem geopolítica enfrenta seus maiores desafios em décadas. A economia flerta com a recessão, os mercados financeiros seguem voláteis e bancos centrais lutam para conter a inflação.

Mas, por trás desses grandes abalos, está ocorrendo uma transformação mais silenciosa e talvez ainda mais profunda: o rápido avanço da inteligência artificial, que está mudando a forma como pensamos o trabalho, a produtividade e o valor econômico.

Pode ser tentador deixar para depois as preocupações sobre os impactos futuros dessa nova tecnologia. Mas se não começarmos a discutir agora como nossas sociedades e economias vão lidar com a automação, as consequências poderão ser muito mais graves e duradouras do que as crises que enfrentamos hoje.

As questões sobre quem trabalha, como trabalha e se o trabalho garante dignidade e sustento vão moldar o futuro econômico muito mais do que qualquer flutuação de mercado ou tensão geopolítica.

Historicamente, a tecnologia impulsionou o crescimento e gerou novos empregos – mesmo que, no curto prazo, a automação tenha provocado perdas. Seria fácil acreditar que isso vai se repetir com a inteligência artificial.

Mas seria um grave erro. Quando algoritmos se tornam capazes de aprender, criar e agir sozinhos, as antigas premissas deixam de fazer sentido.

O QUE DIZEM OS NÚMEROS SOBRE O FUTURO DO TRABALHO

Uma das razões pelas quais este momento é diferente é a velocidade e escala da transformação em curso. Pesquisadores apontam que 60% dos cargos atuais sequer existiam há 80 anos – o que já é impressionante. Mas a IA promete mudanças ainda mais rápidas e profundas no mercado de trabalho.

Segundo o Goldman Sachs, até 300 milhões de empregos no mundo estão “expostos” à automação. O FMI estima que, globalmente, 40% das vagas correm risco – índice que chega a 60% nas economias mais desenvolvidas.

E isso é só o começo. No longo prazo, muitos líderes do setor de tecnologia, como Bill Gates, acreditam que a maioria das funções humanas deixará de existir.

O futuro não será de quem automatizar mais rápido, mas de quem souber usar a tecnologia com sabedoria.

O Fórum Econômico Mundial traz uma visão mais otimista: prevê que 92 milhões de postos serão extintos nos próximos cinco anos, mas que 170 milhões de novas vagas serão criadas. No entanto, os argumentos para esse saldo positivo não são muito convincentes.

Grande parte dessas novas vagas seria em funções tradicionais, como agricultura, entregas e processamento de alimentos – exatamente o tipo de trabalho que a tecnologia atual já consegue automatizar.

Já a área que mais deve crescer, segundo as previsões, é o setor de tecnologia – especialmente análise de dados, desenvolvimento de software e engenharia financeira. Mas presumir que a IA vai criar em vez de eliminar empregos nessas áreas é, no mínimo, uma visão bastante otimista.

Na prática, os dados não confirmam essa expectativa. Embora o Departamento do Trabalho dos EUA projete um crescimento de 18% no número de desenvolvedores de software entre 2022 e 2032, estudos recentes mostram uma queda tanto no número de contratações quanto no volume de vagas abertas nesse setor entre 2022 e 2025.

ONDAS, NÃO MAROLAS

Mesmo no melhor cenário – em que a IA gere mais atividade econômica e mais empregos –, grandes disrupções são inevitáveis. Se milhões de funções de baixa qualificação forem substituídas por cargos técnicos altamente especializados, será preciso um programa global de requalificação sem precedentes.

Sem isso, milhões de pessoas serão deixadas para trás. E não é exagero dizer que os impactos sociais e políticos podem ser avassaladores. Muitos países ainda não se recuperaram do colapso de suas indústrias tradicionais. Uma nova crise, desta vez impulsionada pela tecnologia, pode ser devastadora para as populações mais vulneráveis.

No pior cenário, essas ondas de mudança virariam um verdadeiro tsunami. A automação em massa poderia causar desemprego generalizado e provocar instabilidade social, destruindo comunidades e derrubando governos.

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Crédito: Jeff Bergen/ ktsimage/ iStock

Uma geração de jovens sem perspectivas, impedida de entrar no mercado de trabalho por falta de experiência ou qualificação, seria uma bomba-relógio geopolítica. No plano macroeconômico, o risco seria de uma crise de demanda – uma economia que  produz mais do que os consumidores conseguem comprar.

É aí que está o paradoxo da eficiência: ao priorizar cortes de custos com automação, as empresas podem acabar destruindo a base de consumo que sustenta seus próprios negócios. Máquinas não compram celulares, não assinam serviços de streaming, não adquirem imóveis. Quem compra são as pessoas.

Se a IA provocar desemprego em larga escala, a queda na demanda agregada pode levar a uma espiral deflacionária, colocando em risco a estabilidade da economia global e o futuro do trabalho.

RESPONSABILIDADE COMPARTILHADA SOBRE O FUTURO DO TRABALHO

Na teoria, governos poderiam atenuar esses riscos com regulamentações. Mas, na prática, a legislação quase nunca acompanha o ritmo das revoluções tecnológicas.

Não podemos depender apenas de soluções “de cima para baixo”. Precisamos democratizar a responsabilidade e o protagonismo na gestão do ritmo da automação e na preservação das bases sociais e econômicas que sustentam nossas sociedades.

muitos líderes do setor de tecnologia acreditam que a maioria das funções humanas deixará de existir.

As empresas têm um papel vital nessa missão de proteger o futuro do trabalho humano. Precisam adotar uma liderança regenerativa, que vá além da busca por ganhos imediatos e que foque na sustentabilidade do ecossistema como um todo.

É fundamental que os líderes entendam que seus funcionários não são apenas “recursos” substituíveis, são também consumidores que mantêm a economia girando. Isso exige abandonar a lógica dos lucros trimestrais e adotar uma visão sistêmica, voltada para a sustentabilidade a longo prazo.

As empresas que abraçarem essa visão podem implementar estratégias que potencializem a automação sem excluir as pessoas, como por exemplo:

- Preservar cargos de entrada no mercado de trabalho: mesmo que a automação pareça mais vantajosa, é essencial manter vagas iniciais para a formação de novos profissionais.

- Investir em requalificação e transição: as empresas vão precisar financiar programas de capacitação para que trabalhadores deslocados possam assumir novas funções – como gestão e curadoria de fluxos de trabalho da IA.

- Reconhecer a interdependência social: empresas, funcionários e consumidores fazem parte de um sistema interligado. Se a base de consumidores perder acesso ao mercado de trabalho, todo o sistema entra em colapso.

ESCOLHENDO O FUTURO QUE QUEREMOS

A revolução da inteligência artificial nos coloca diante de uma escolha decisiva: seguir com uma automação desenfreada ou adotar uma implementação responsável. Cada decisão tomada agora moldará o futuro do trabalho e o mundo que teremos amanhã.

Ao colocar o bem-estar humano no centro das inovações, líderes conscientes não estarão apenas protegendo seus clientes – estarão garantindo a resiliência de toda a economia.

O futuro não será de quem automatizar mais rápido, mas de quem souber usar a tecnologia com sabedoria. O verdadeiro progresso depende tanto de avanços tecnológicos quanto de valorização humana.


SOBRE O AUTOR

Faisal Hoque é fundador da Shadoka, que desenvolve aceleradores e soluções tecnológicas para o crescimento sustentável. saiba mais