Pelo direito ao tédio: quando a vida real vence a corrida digital

A chatice da realidade, com suas rotinas, compromissos e alegrias discretas, é o espaço onde realmente vivemos

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Guido Sarti 5 minutos de leitura

Lembro de quando tinha redes sociais. Abria o Instagram e me deparava com amigos em viagens exóticas, sorrisos perfeitos em cenários deslumbrantes, legendas sobre “viver intensamente”.

Hoje, por escolha, só mantenho o LinkedIn, uma necessidade profissional que ainda me expõe a uma parada de conquistas, promoções e reflexões sobre liderança que parecem saídas de TED Talks.

Fecho o LinkedIn e olho ao redor. O café na xícara já esfriou. Na tela, relatórios me esperam e metodologias pedem aprofundamento. Pela janela, o céu cinzento ameaça chuva.

No tapete da sala, Gaia e Dijul dormem tranquilas. A golden e a corgi nem imaginam minhas preocupações com prazos e boletos. Essa é a minha realidade. Sem filtros, sem ângulos ensaiados. É o cotidiano em sua forma mais crua e, sim, às vezes, chata.

E isso é absolutamente maravilhoso.

Vivemos numa era em que a fantasia digital virou o padrão para medir nossas vidas reais. O resultado é a ansiedade constante, essa sensação de que estamos sempre ficando para trás, de que nunca somos produtivos ou realizados o suficiente. Enquanto fugimos da realidade “chata”, perdemos a capacidade de simplesmente existir, sem a pressão do desempenho constante.

A FANTASIA DIGITAL E A TIRANIA DO CURTO PRAZO

Não é novidade que as redes sociais mostram versões editadas da realidade. O problema é quando essas versões passam a ser a régua com que medimos nossas próprias vidas. Quando o extraordinário vira expectativa, o ordinário passa a ser visto como fracasso.

O algoritmo não mente. Conteúdos extremos geram mais engajamento. A foto de um pôr do sol comum recebe menos curtidas do que aquele capturado no momento perfeito. A opinião cheia de nuances gera menos comentários do que a afirmação categórica. O vídeo da rotina real, com suas pausas, perde para a versão editada da mesma experiência.

por do sol no mar com ilha ao fundo
Crédito: Pixabay

Essa lógica digital agora se soma a uma sociedade obcecada por métricas, KPIs e resultados imediatos. Não basta fazer bem, é preciso fazer rápido, quantificar, mostrar crescimento constante. Planilhas e dashboards nos perseguem do trabalho às atividades de lazer. Até nosso sono e nossos passos são medidos e otimizados. A vida virou uma sucessão de sprints sem linha de chegada.

O VALOR REVOLUCIONÁRIO DO COMUM

Existe algo profundamente libertador em admitir que a maior parte da vida é, sim, bastante comum. Que a maioria dos dias não merece um post. Que muitas de nossas conquistas são pequenas e significativas apenas para nós. Que nossos processos são frequentemente lentos e imperfeitos, e que isso não é um bug, mas uma característica essencial do crescimento humano.

Vivemos numa era em que a fantasia digital virou o padrão para medir nossas vidas reais.

A chatice da realidade, com suas rotinas, compromissos e alegrias discretas, é o espaço onde realmente vivemos. É onde desenvolvemos paciência, onde aprendemos a lidar com a frustração, onde cultivamos relações genuínas que não dependem de validação externa. É onde encontramos tempo para pensar, para mudar de ideia, para simplesmente ser, sem a pressão de estar sempre performando.

Em uma sociedade cada vez mais acelerada, onde o valor está no imediato, talvez o ato mais revolucionário seja justamente desacelerar. Reivindicar o direito ao tédio, ao processo lento, ao resultado que demora para aparecer. Quando abraçamos a realidade em toda sua complexidade chata, criamos espaço para a contemplação, para o erro, para o crescimento.

A ANSIEDADE DA PERFEIÇÃO EM TEMPO REAL

Coletivamente, estamos perdendo a capacidade de lidar com processos longos e resultados imperfeitos. As redes sociais nos empurram para uma cultura de gratificação instantânea. O lento, o processual, o complexo, tudo isso é filtrado em favor do rápido, do simples, do imediato.

Quando essa lógica se encontra com a pressão corporativa por resultados trimestrais e métricas em tempo real, o resultado é uma sociedade em permanente estado de ansiedade.

Felizmente, a realidade é mais chata que o feed da internet.

Se estamos acostumados a ver apenas versões idealizadas da realidade, como desenvolver a tolerância necessária para projetos de longo prazo? Se rejeitamos a chatice do processo, como criar algo verdadeiramente significativo?

A ansiedade que vemos hoje vem da combinação tóxica entre a fantasia digital e a tirania do curto prazo. Quanto mais fugimos da realidade chata, mais perdemos as ferramentas necessárias para lidar com a natureza fundamentalmente imperfeita e lenta da vida real.

O ELOGIO NECESSÁRIO À IMPERFEIÇÃO

Talvez seja hora de celebrarmos a beleza da vida comum. De reconhecermos que há uma profunda sabedoria em abraçar a chatice da realidade, não como resignação, mas como um ato revolucionário em um mundo obcecado por velocidade e perfeição.

A vida real acontece nos intervalos. Está nas conversas desajeitadas onde mudamos de opinião. Nos projetos que demoram mais do que o previsto. Nas amizades que não rendem fotos perfeitas, mas oferecem apoio constante. No trabalho que raramente é tão glamouroso quanto parece no LinkedIn, mas que tem seu valor e significado.

Quando abraçamos essa realidade chata, descobrimos algo surpreendente. Ela é extraordinariamente rica. É nesse espaço aparentemente monótono que desenvolvemos as habilidades essenciais para uma vida equilibrada.

flor da espécie margarida com pétalas faltando
Crédito: Dreamstime

Paciência, tolerância à frustração, capacidade de apreciar pequenos momentos. É onde aprendemos que nem tudo precisa ser perfeito para ser valioso. Que nem toda jornada precisa ser rápida para ser significativa.

Em um mundo cada vez mais acelerado, talvez o ato mais radical seja justamente reclamar o direito à lentidão, à imperfeição, ao tédio. Em suma, o direito a uma vida comum, com suas alegrias discretas e seus desafios cotidianos. Uma vida que não cabe em um feed ou em uma planilha, mas que, justamente por isso, pode ser vivida em toda a sua plenitude.

Felizmente, a realidade é mais chata que o feed da internet, que a fantasia digital. E é exatamente nessa chatice que reside nossa esperança de redescobrir o valor do processo lento, da contemplação, da existência que não precisa ser constantemente justificada por métricas de desempenho.

Então, da próxima vez que você se sentir culpado por não estar sendo produtivo o suficiente, lembre-se: há uma revolução silenciosa acontecendo nos espaços entre posts e métricas. Uma revolução que começa quando ousamos dizer sim, minha vida é mais chata que meu feed – e isso é absolutamente maravilhoso.


SOBRE O AUTOR

Guido Sarti é sócio da Galeria Ag e atua como professor coordenador na Miami AdSchool. Foi Head de Novos Negócios e Convergência na Gl... saiba mais