Reputação, herança e separação de bens digitais: reforma tenta atualizar Código Civil
Proposta tenta trazer segurança jurídica para bens digitais e tecnologias inovadoras, mas juristas alertam para possíveis conflitos regulatórios e sobreposições

Virginia Fonseca e Zé Felipe se separaram. Como será feita a divisão das publicações monetizadas? Dos perfis de mais de sete milhões de seguidores que ambos gerenciam? Para quem ficará o acesso ao acervo de posts do casal? Essas perguntas devem encontrar respostas com a reforma do Código Civil, que está em discussão no Senado.
O Código Civil é um conjunto de leis que organiza a vida privada dos brasileiros. Em vigor desde 2002, pede atualizações diante das transformações digitais. “Hoje, vivemos em uma sociedade digital e, mesmo assim, temos um código que não trata disso", afirma o relator-geral da proposta, Flávio Tartuce.
Elaborada por uma comissão de juristas em 2023, a proposta ainda será debatida pela Câmara dos Deputados e só deve entrar em vigor em 2027. Até lá, o desafio será atualizar o Código Civil sem gerar insegurança jurídica.
O debate ocorre em meio a outras conversas decorrentes dos avanços tecnológicos. O projeto de lei das fake news segue parado na Câmara. A regulamentação da inteligência artificial, em tramitação no Congresso, ainda não tem previsão de aprovação. O Supremo Tribunal Federal (STF) segue discutindo se o artigo 19 do Marco Civil da Internet é ou não inconstitucional.
DIREITO CÍVICO DIGITAL
A proposta de reforma tem 269 páginas e traz mais de mil alterações no Código Civil. Entre elas, a criação de um livro inteiramente dedicado ao chamado “direito cívico digital”, com pelo menos 70 artigos inéditos voltados à regulamentação da vida online, da herança de bens digitais à proteção da identidade virtual.
Segundo Tartuce, o livro digital tem função didática: reunir os temas relacionados à tecnologia em um só volume facilitaria o acesso a quem atua com direito. “As pessoas precisam encontrar os assuntos digitais com clareza”, diz.
A proposta inclui regras para identidade virtual e herança de bens como arquivos em nuvem, perfis em redes sociais, contas de streaming, contratos eletrônicos e assinatura digital.
Também trata da reputação digital, definida como “a percepção pública da identidade e das interações de uma pessoa em ambiente digital”. A ideia é garantir proteção à honra e à imagem em espaços online, reconhecendo que danos morais e materiais também ocorrem nesse contexto.
Mas a forma como o conteúdo foi organizado é vista com ressalvas por especialistas em direito digital. “O digital não é um tema isolado, é um atravessamento. A tecnologia impacta contratos, família, responsabilidade civil. Criar um capítulo à parte dá a impressão de que o digital é uma exceção, quando na verdade ele está em tudo", afirma Paulo Rená, pesquisador do Instituto de Referência em Internet e Sociedade (IRIS).
Rená, que foi gestor do processo de elaboração coletiva do Marco Civil da Internet, argumenta que não há mais divisão entre vida física e digital. Por isso, separar “direito digital” de “direito civil” não faz sentido.
REFORMA DO CÓDIGO CIVIL INCLUI ATÉ NEURODIREITOS
Entre os artigos inéditos, um dos pontos mais inovadores é a inclusão dos neurodireitos, que buscam garantir proteção à integridade mental em contextos de uso de neurotecnologias, como próteses cognitivas, chips cerebrais e interfaces mente-máquina. O texto assegura o direito à privacidade mental, à continuidade da identidade pessoal e à proteção contra manipulações não consentidas no cérebro.
Alexandre Zavaglia, presidente da Comissão de Tecnologia e Inovação da OAB-SP, vê os temas como urgentes, mas critica sua separação em um novo capítulo. “Herança digital é herança. Contrato eletrônico é contrato. O que temos é um problema de encaixe, não de ausência de conteúdo. O digital não é um tema separado da realidade”, argumenta.

Especialistas alertam que o conceito amplo de reputação digital pode gerar interpretações problemáticas. Para Zavaglia, pode forçar a ação preventiva de plataformas e resultar em remoções de conteúdo sem justificativa.
O texto inclui esse conceito como fundamento para reparação de danos, o que, segundo Paulo Rená, pode abrir caminho para abusos. “A falta de definição clara pode gerar um efeito de silenciamento. Críticas legítimas podem acabar sendo removidas sob a justificativa de proteção à reputação.”
TROPEÇOS NO CAMINHO
Se por um lado a proposta mira o futuro, por outro ainda tropeça em conceitos vagos, sobreposições com leis existentes e brechas para judicialização. Para Zavaglia, a intenção é boa, mas o efeito pode ser o oposto: gerar insegurança. “O texto traz conceitos que colidem com outras normas. Isso pode gerar insegurança, inclusive para quem está tentando cumprir a lei.”
Um exemplo: o texto dedica um capítulo ao direito ao ambiente digital transparente. Nele, indica que plataformas digitais de grande alcance devem analisar riscos sistêmicos dos conteúdos postados e podem ser responsabilizadas por conteúdos de terceiros, o que contraria o artigo 19 do Marco Civil da Internet.
O Código Civil é um conjunto de leis que organiza a vida privada dos brasileiros.
A reforma do Código Civil não revoga esse artigo, que protege as plataformas de responsabilização automática. Ao prever indenizações com base em danos digitais, pode esvaziar esse princípio na prática.
Rená aponta o risco de revogar o artigo 19 sem substituí-lo por outra norma. “Se o artigo 19 for revogado, é preciso entrar algo com urgência para substituir a regra. E urgência não combina com discussão de um Código Civil.”

A preocupação é compartilhada por Marcela Mattiuzzo, sócia do escritório VMCA Advogados, especializada em direito e tecnologia. “Se trouxer discussões específicas de tecnologia para dentro do Código Civil, a mensagem é que vai ficar na mão do Judiciário resolver e reforçar as regras.”
A regulamentação de temas dinâmicos e complexos, como reputação digital, exige atuação especializada e ativa da fiscalização. E o Judiciário não tem capacidade para absorver essa demanda. Atualmente, o sistema tem 84 milhões de processos em tramitação.
Em vez de pacificar relações, a proposta corre o risco de acirrar tensões, sobretudo quando o que está em jogo são direitos fundamentais como liberdade de expressão, privacidade e acesso à informação.
A proposta de reforma do Código Civil tenta lidar com os conflitos de uma vida cada vez mais digital, mas também corre o risco de entregar soluções mal resolvidas. Como em qualquer separação, o que está em jogo não é apenas o passado ou o presente. É a forma como será possível conviver no futuro.