O que bonecas reborn e conselhos homogêneos têm em comum

Bonecas reborn e conselhos administrativos homogêneos têm em comum o desejo de um mundo onde ninguém precise ser atravessado pelo choro do outro

montagem de imagens de pessoas sentadas com rostos de bonecas
Crédito: Freepik

Ana Bavon 4 minutos de leitura

Vivemos um tempo em que tudo é dito em nome do coletivo, mas quase nada é vivido como comunidade. A diversidade se tornou uma métrica; a inclusão, uma meta; o pertencimento, um valor de LinkedIn. Mas, quando observamos a base concreta do tecido social e organizacional, o que emerge não é inclusão – é solidão das mais completas.

Esta semana fui capturada por uma enxurrada de conteúdos que estampavam uma imagem: a da boneca reborn. Aquela que simula com perfeição o corpo de um bebê real, mas que não chora. Não se move. Não exige. Não contesta. Não demanda. Pode ser vestida, exibida, amada – sem jamais colocar sua criadora à prova.

Não quero e não vou discutir o direito de mulheres adultas tutelarem suas bonecas. Também não pretendo traçar um comparativo com os hobbies e esportes masculinos. Tampouco vou fazer uma análise do perfil psicológico e dos motivos por que se defende a relação entre mulheres e suas bonecas.

O que quero aqui é levantar um ponto de vista sobre como lidamos com o incômodo do que vive para além de nós, principalmente a partir da perspectiva corporativa e das suas instâncias de poder.

Olho para a realidade das bonecas com suas tutoras e penso: quantos espaços de poder operam do mesmo modo? Quantos conselhos de administração, diretorias executivas e comitês estratégicos são ocupados por versões reborn de gente diferente daquelas que historicamente ocupam esses espaços?

Gente que “simula” a diferença sem jamais alterar a lógica dominante. Pessoas que performam a pluralidade, mas foram escolhidas a dedo por não chorarem alto demais, não demandarem demais, não desafiarem demais.

O problema não é a boneca reborn. É o que ela revela sobre nossa recusa ao incômodo da vida.

Estou falando principalmente da inclusão de mulheres brancas em conselhos. Mulheres que operam a mesma lógica de sempre sem jamais se afetar pelo que também lhes atravessa.

Segundo o levantamento mais recente do IBGC (Instituto Brasileiro de Governança Corporativa), apenas 16% dos conselheiros em empresas brasileiras são mulheres – e, dentro desse grupo, menos de 1% são mulheres negras.

Os dados raciais, aliás, sequer são levantados de forma consistente pela maioria das empresas, o que por si só já diz muito. Em 2024, o Board Diversity Index da Diligent mostrou que 76% dos conselhos de grandes companhias na América Latina são formados exclusivamente por pessoas brancas e mais de 90% são compostos apenas por pessoas cisgênero e heterossexuais.

CONSELHOS HOMOGÊNEOS E A RECUSA EM LIDAR COM O DIFERENTE

Em ambos os casos – bonecas ou conselhos –, o que se preserva é o direito de não ter que lidar com o outro. Um pacto tácito por harmonia, que é, no fundo, um projeto de assepsia. Tudo é mantido no mais absoluto conforto do pacto narcísico da branquitude.

A boneca reborn revela mais do que uma carência individual: ela materializa o desejo de controle absoluto sobre o afeto. O bebê real chora, acorda de madrugada, adoece, tem fome fora de hora. O bebê real exige uma ética do cuidado que se faz na relação, e não no objeto. Já o bebê reborn está sempre disponível, calado, bonitinho. É afeto sem risco.

Assim também é o conselho homogêneo: é decisão sem fricção, convivência sem escuta real, convivência sem alteridade. Um lugar onde se age com o outro apenas até o ponto em que esse outro não compromete a lógica do mesmo.

Crédito: Eduardo Alexandre/ Andrew Moca/ Unsplash

A psicanálise tem um conceito que diz que o sintoma é sempre a denúncia do que foi expulso. Talvez a obsessão contemporânea por simulações de companhia – bonecas, bots, avatares – seja justamente o sintoma de uma sociedade que perdeu a capacidade de estar com o outro na inteireza do outro.

Não só o outro que enfeita a sala, mas o que reclama lugar, história, memória. O que faz perguntas. O que nos desorganiza. Incluir mais mulheres negras ou homens negros em um conselho seria ter que lidar com o completo desconhecido, navegar na total desorganização.

DEMOCRACIA, JUSTIÇA E GOVERNANÇA

É por isso que os ambientes corporativos seguem contratando a diferença, mas punindo a divergência. Ou melhor, seguem mantendo a diferença onde ela pode espernear sem ser ouvida: os cargos sem poder de decisão.

A boneca reborn pode estar na estante – desde que não chore como choram os corpos reais quando suas histórias são silenciadas. A executiva negra pode ser aplaudida – desde que não questione os ritos de um sistema que segue tratando sua existência como exceção tolerável.

apenas 16% dos conselheiros em empresas brasileiras são mulheres e menos de 1% são mulheres negras.

O problema não é a boneca reborn. É o que ela revela sobre nossa recusa ao incômodo da vida. Sobre nossa tentativa constante de silenciar o outro, mesmo quando nos dizemos inclusivos.

Precisamos, urgentemente, recuperar o direito de estar com. Com o outro real, não com a versão palatável da alteridade. Porque democracia, justiça e governança não são projetos de vitrines bem arrumadas – são processos disfuncionais, contraditórios, por vezes dolorosos. Mas absolutamente insubstituíveis.

No fim das contas, o que bonecas reborn e conselhos homogêneos têm em comum é o mesmo desejo de mundo: um onde ninguém precise ser atravessado pelo choro do outro. Um onde o afeto é encenado, a diferença é estetizada e a convivência é uma ficção higienizada.

Mas a vida – e a dignidade – começam onde termina a performance. E só ali é possível construir algo radicalmente humano.


SOBRE A AUTORA

Ana Bavon é advogada e estrategista especializada em governança social, impacto corporativo e responsabilidade institucional, fundador... saiba mais