Bridgerton e o espartilho, o mais controvertido acessório feminino da história
Quando se pensa em espartilho, o que vem à cabeça são as mocinhas dos filmes de época se agarrando a algum móvel enquanto uma dama de companhia puxa com força as cordas, para amarrá-las bem apertado. O seriado “Bridgerton”, da Netflix, não dispensa algumas dessas cenas de tortura.
No intervalo que antecedeu a segunda temporada da série , Simone Ashley, que interpreta a nova heroína Kate Sharma, reclamou dos horrores de usar um espartilho (ou corset). Em entrevista à revista Glamour, ela alegou que a peça causou “muita dor” e que “mudou seu corpo”.
Em uma cena da primeira temporada, Prudence Featherington (interpretada pela atriz Bessie Carter) está usando um espartilho bem justo. A mãe de Prudence se compara à filha: “Quando eu tinha a mesma idade, conseguia apertar minha cintura no tamanho de uma laranja e meia”. Observação desnecessária e imprecisa, já que os vestidos do período da Regência Britânica (1811-1820) tinham corte solto abaixo do busto, que disfarçava a cintura e a barriga. Ao contrário do que aconteceria depois com as suas contrapartes vitorianas, os espartilhos da época em que a série se passa serviam para melhorar os atributos de uma dama, não para encolher sua cintura.
Por séculos, as mulheres usaram corsets. Mas foram os homens da época vitoriana que nos ensinaram a odiá-los.
Esse tipo de cena é onipresente em dramas de época. Seja em “Piratas do Caribe”, quando Elizabeth Swan (Keira Knightley) desmaia, seja em “Titanic”, quando Rose (Kate Winslet) mal consegue respirar e, é claro, na mítica cena de “E o Vento Levou” em que Scarlett O ‘Hara (Vivien Leigh) se agarra ao dossel da cama enquanto a simpática Mammy pede que ela segure firme e prenda a respiração. Talvez essas representações sejam apenas uma forma simples de o cinema ilustrar que a vida das mulheres era restrita. Mas a questão é que todas decorrem de um mal-entendido histórico fundamental sobre os espartilhos – e sobre as mulheres.
Por séculos, mulheres (e até alguns homens) usaram corsets para dar forma e firmeza ao corpo. Mas foram os homens da época vitoriana que nos ensinaram a odiá-los. As questões de saúde relacionadas ao uso do acessório não passavam de um mito, criado pelos médicos para promover suas próprias perspectivas patriarcais. Ou seja, por mais contraintuitivo que isso possa parecer, os filmes de época vêm perpetuando a misoginia vitoriana.
CORSET, MEDICINA E MISOGINIA
A lista de queixas de saúde que os médicos do século XIX atribuíam ao espartilho é interminável. Constipação, complicações na gravidez, câncer de mama, infecção pós-parto e tuberculose: tudo isso já foi atribuído ao acessório. Benjamin Orange Flower, médico vitoriano e autor do panfleto “Escravas da Moda” (de 1892), chegou a afirmar que “se as mulheres continuarem com esse hábito destrutivo, a raça inevitavelmente se deteriorará”.
Com a evolução da ciência, a verdadeira causa das doenças foi identificada e o espartilho, absolvido. O corset é um bom exemplo de preconceito de gênero na pesquisa médica. Os diversos males dos quais sofria o rei George IV, um dos muitos homens a usar o acessório no século 19, nunca foram atribuídos ao espartilho.
Alguns foram, inclusive, projetados especificamente para serem saudáveis e dar suporte o corpo. Em 1909, a empresa de lingerie Gossards publicou Corsets from a Surgical Perspective (Espartilhos de uma Perspectiva Cirúrgica), analisando a flexibilidade e as possibilidades de suporte do espartilho, que poderia “preservar as linhas exigidas pela moda, mas sem desconforto ou lesão”.
Os espartilhos do passado eram engenhosos, leves e flexíveis. O uso de barbatanas de baleia (que também são chamadas de “barbas de baleia” e que não são ossos, mas sim placas flexíveis de queratina retiradas das bocas das baleias) tornou a peça maleável, moldável ao corpo abaixo dele. Muitos eram reforçados apenas com cordões de algodão. Eles reduziam a dor nas costas por má postura e tinham versões expansíveis para a gravidez.
Mas o biotipo em forma de ampulheta, típico do final do século 19, não era o que as mulheres do período da Regência desejavam. Nessa época, o foco eram os seios, como aponta Hilary Davidson, historiadora e curadora de vestidos, têxteis e moda. Os seios precisavam ser levantados e separados em duas esferas redondas. Os espartilhos da Regência eram frequentemente curtos, sempre macios e nunca de estrutura pesada. O objetivo era apoiar o busto, não comprimi-lo.
PERPETUAÇÃO DE MITOS HISTÓRICOS
O problema na representação de espartilhos em romances e produções de época não é de “precisão histórica”. Até porque, essa ideia já foi amplamente desmascarada pelos historiadores, incluindo o próprio conselheiro histórico de “Bridgerton”. Além disso, os figurinos do seriado lembram as linhas Império reinventadas nos anos 1960 pelo designer George Halley, em uma profusão exuberante de cores. Os figurinos são, na verdade, fantasias com inspiração histórica.
As mulheres do passado tinham poder sobre seus corpos e sobre como se vestiam.
“Bridgerton” está para a o período da Regência como “Game of Thrones” está para a Guerra das Duas Rosas, e não há nada de errado com essa liberdade ficcional. São releituras fantásticas, inspiradas com criatividade no passado. A ideia de que o figurino deve ser “historicamente preciso”, ou que tal aspiração seja mesmo possível, não é o que está em jogo.
O que estamos debatendo é a perpetuação de uma falácia histórica. As mulheres do passado tinham poder sobre seus corpos e sobre como se vestiam. Foram espertas para alcançar as proporções da moda, preenchendo os quadris e o busto, e não reduzindo a cintura. Assim como a famosa costureira da série, a personagem Madame Delacroix, muitos dos profissionais que as vestiam eram mulheres. Ignoramos essa engenhosidade quando deduzimos que as mulheres eram bonecas passivas, vestidas e amarradas por uma sociedade patriarcal.
Para muitas, o corset era uma peça de apoio, aquilo que lhes permitia seguir a silhueta da moda sem precisar fazer dieta, exercício ou cirurgia plástica. Seria uma mudança interessante se os dramas de época abraçassem essa história feminista do espartilho, em vez de cair na armadilha de mais um estereótipo misógino.