Brasil no centro, IA em xeque: o que está em jogo no Cannes Lions 2025
Festival aposta em menos hype e mais impacto, com destaque para o protagonismo brasileiro, a consolidação da creator economy e o uso crítico da IA

O Festival Internacional de Criatividade Cannes Lions 2025 começa na próxima segunda-feira (dia 16) em um momento de reavaliação da indústria criativa. O avanço da inteligência artificial no mercado publicitário já traz resultados práticos e dúvidas reais. Tudo isso em meio a um cenário mundial marcado por polarização política, pessimismo ambiental e cansaço digital.
Tendo dominado os debates recentes com promessas aceleradas, a IA continua no centro das atenções da indústria criativa, mas agora em outro tom. A expectativa, desta vez, não é por novidades tecnológicas, e sim por respostas mais concretas sobre seu uso, seus limites e sua integração com processos criativos humanos.
De outro lado, cresce a valorização de temas como saúde mental, afeto e segurança emocional nas campanhas. Essa combinação tem alimentado uma tensão central no setor: como usar a tecnologia sem esvaziar o que há de mais sensível na comunicação?
Para Rafael Caldeira, cofundador da 404 Design & Innovation e jurado da categoria Innovation, o uso de IA ainda é marcado por confusão – e, muitas vezes, por uma tentativa de disfarçar a superficialidade com estética.
“De cada nove cases, oito mencionam IA. Mas é difícil identificar onde exatamente ela foi usada e com que propósito. A maior parte ainda é machine learning rotulado como inteligência artificial”, aponta. “Tem muito truque e pouca intenção real de resolver algo novo com tecnologia.”
Essa falta de clareza se reflete até no processo de inscrição. Pela primeira vez, o festival passou a exigir que as agências informem se usaram IA para desenvolver a campanha ou para preencher os formulários – algo que, segundo Caldeira, já gera debate nos bastidores.
“Só essa exigência já revela um desconforto: a IA está tão presente que é preciso diferenciar quando ela é meio e quando é motor da criação. E isso muda a forma como a gente julga o trabalho”, reconhece.
O ELEFANTE NA SALA
Além da crítica técnica, há também uma preocupação de fundo: como a popularização da IA pode afetar a formação de novos talentos criativos. “Já terceirizamos a memória, com o celular. Agora, estamos terceirizando o processo criativo. O que isso vai gerar na sensibilidade e na autonomia das próximas gerações de criativos?”, questiona Caldeira.
Ainda assim, a IA segue se impondo como eixo transversal entre mídia, criação e mensuração. E o festival tenta ajustar seus parâmetros. Para Viviane Duarte, CEO da Plano Feminino e jurada da categoria Brand Experience & Activation, o debate mais relevante é sobre como a IA se posiciona como assistente estratégica, e não substituta da criatividade humana.
o uso de IA, muitas vezes, é só uma tentativa de disfarçar a superficialidade com estética.
“Ela pode otimizar timing e orçamento, mas ainda vai precisar de grandes cabeças para pensar as ideias e 'brifar' o que precisa ser feito. Tem decisões que só um humano consegue tomar com precisão”, afirma.
Laura Chiavone, diretora de agências da Meta no Brasil, também espera que o festival traga uma visão mais madura sobre o tema. “A novidade agora não é a tecnologia em si, mas a linguagem que se criou em torno dela. Ferramentas mais sofisticadas e acessíveis estão mudando a forma de pensar produção, processo e criatividade como um todo.”
Em meio às discussões, surgem cases que usam a tecnologia para resolver problemas de forma prática e com senso de propósito. É o caso de "Daisy", campanha da operadora O2 no Reino Unido, que criou uma vovó digital para conversar por telefone com golpistas e tirar o tempo deles – uma estratégia de “scam baiting” com IA conversacional, que mistura tecnologia, humor e segurança.
HOMENAGM À CRIATIVIDADE BRASILEIRA
Pela primeira vez, o Cannes Lions reconhece um país como protagonista global da criatividade. A escolha do Brasil como Creative Country of the Year celebra não só o volume de prêmios acumulado nas últimas décadas, mas principalmente a consistência de uma abordagem criativa que combina engenhosidade, repertório cultural e capacidade de fazer muito com pouco.
Para Flávio Medeiros, diretor de criação e inovação da agência 3mais, a homenagem faz sentido justamente em um ano em que o festival se volta àquilo que o Brasil sempre soube fazer: campanhas com calor humano, senso de humor e afeto.
“O Brasil ser homenageado justamente agora é simbólico. A leveza, o humor e a humanidade da nossa propaganda aparecem em um momento no qual o mundo inteiro está buscando esse equilíbrio. Estamos estressados com tecnologia”, afirma.
a IA segue se impondo como eixo transversal entre mídia, criação e mensuração.
A mudança, para Medeiros, se mostra em peças que estimulam o bem-estar e as conversas sobre saúde mental, além daquelas que tratam sobre a vida off-line. E se mostra nas mudanças vistas nas premiações. Em 2025, a categoria Glass: The Lion for Change está mais extensa, contemplando temas como raça, deficiência, sexualidade e desigualdade social.
O concorrente brasileiro desse prêmio, para Medeiros, é a prova de como a criatividade e a tecnologia podem ser usados com o mundo off-line em foco. Um exemplo prático é a campanha “Caramelo”, da Ogilvy Brasil para a marca de ração para pets Pedigree.
O filme resgata a história de um cachorro perdido e busca seu tutor por meio do cruzamento de dados genéticos com bancos de DNA canino. A tecnologia está ali – mas não no centro da mensagem.
“Ela serve à ideia, não é a ideia. O que se destaca é o argumento emocional, a conexão com o real, o afeto que esse cachorro representa. E isso tem um valor simbólico muito forte neste momento”, comenta.
Ao lado da homenagem, a atuação brasileira também se destaca em júris, painéis e ativações paralelas. O país chega a Cannes como uma referência em criatividade aplicada – não apenas estética, mas estratégica.
“O brasileiro tem um radar muito bom para identificar oportunidades e propor soluções criativas com os recursos que tem”, diz Laura Chiavone, diretora de agências da Meta no Brasil. Segundo ela, esse modo de pensar se profissionalizou a ponto de ser exportado com sucesso: hoje, há brasileiros liderando times criativos em agências e plataformas no mundo todo.
CREATOR ECONOMY:DA AMPLIFICAÇÃO À AUTORIA NARRATIVA
A influência já não é só uma alavanca de alcance, é parte da construção das ideias. Essa mudança de percepção aparece com clareza na reformulação da categoria agora chamada Social & Creator Lions – que, além do novo nome, ganhou cinco subcategorias voltadas à atuação criativa de influenciadores.
“A agenda dedicada aos criadores cresceu. Isso é um claro sinal da importância do tema nas estratégias de marketing no mundo todo”, afirma Ana Paula Passarelli, diretora e cofundadora da Brunch, ao apontar a posição do Brasil como referência global no uso da influência como recurso narrativo.
O brasileiro tem um radar muito bom para identificar oportunidades e propor soluções criativas com os recursos que tem.
O que muda em Cannes é justamente essa virada: de creators como canais para creators como cocriadores. “Um case dessa área não pode mais se apoiar só em amplificação. Ele precisa nascer da construção da narrativa”, explica Ana Paula.
A mudança de perfil do mercado também impõe novos desafios. Com o surgimento de avatares de IA atuando como influenciadores, cresce a pressão para que criadores reais se diferenciem.
“Identidade própria, vínculo emocional com a audiência e repertório cultural serão diferenciais importantes nesse novo ecossistema”, diz Viviane Duarte, CEO da Plano Feminino e jurada da categoria Brand Experience & Activation. Ela também destaca a necessidade de diversificação de negócios por parte dos criadores, para além da própria imagem.
Do ponto de vista das marcas, essa transformação demanda mais do que contratos de visibilidade. Campanhas como "Vaseline Verified", que partiu de conversas espontâneas nas redes para validar dicas de uso com base científica, mostram como o diálogo genuíno pode gerar conteúdo de marca relevante.
No fundo, o que o Cannes Lions 2025 parece buscar não são fórmulas inéditas, mas melhores perguntas. Como preservar a sensibilidade em meio à automação? Como construir marcas que importem, em vez de só venderem? Como garantir que a tecnologia amplifique ideias humanas – e não as substitua?
Entre algoritmos e afetos, a criatividade segue tentando encontrar o ponto de equilíbrio. Talvez o papel mais relevante da indústria agora seja esse: não escolher um lado, mas lembrar que ambos são necessários.