Por que o choque entre artistas e IA é ainda mais complicado do que estamos vendo

O embate está acalorado – mas a verdade está nas zonas cinzentas, onde criatividade e código caminham lado a lado

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Lauren Oliver 4 minutos de leitura

“Em três anos, qualquer pessoa vai conseguir criar um longa-metragem com IA, totalmente personalizado, apenas digitando alguns comandos.” Essa foi a previsão que ouvi de um executivo de tecnologia dias atrás – dita com uma tranquilidade quase desconcertante.

Pensei em dizer que isso acabaria com uma das funções mais essenciais – e mais belas – da arte: conectar pessoas através do tempo e do espaço por meio de um único ato de imaginação. Mas, naquele momento, preferi guardar o comentário.

O embate entre artistas e IA tem se tornado cada vez mais acalorado. De um lado, os entusiastas da tecnologia celebram a IA generativa como uma ferramenta capaz de transformar qualquer pessoa em artista. Do outro, criadores veem essa revolução como uma ameaça direta – tanto ao seu sustento quanto à própria essência da criatividade humana.

É difícil assistir a esse embate de extremos – especialmente para quem vive entre os dois mundos. Sou escritora há anos, com diversos romances publicados na lista de best-sellers do “The New York Times”, além de ter roteirizado todos os episódios da série “Panic”.

Mais recentemente, ao pesquisar novas tecnologias para projetos criativos, acabei me envolvendo no desenvolvimento de modelos de inteligência artificial. E, por essa vivência entre arte e tecnologia, posso afirmar: há nuances importantes sendo ignoradas no debate.

Uma delas é algo que executivos de IA raramente admitem – mas que os artistas precisam entender: modelos como o ChatGPT já consumiram praticamente todo o conteúdo disponível na internet.

Para continuar evoluindo, essas ferramentas dependem de novos dados – o que inclui obras originais. Sem isso, os modelos ficam presos em um ciclo de repetição, produzindo conteúdo derivado de outros conteúdos gerados por IA, o que leva a uma queda de qualidade e a resultados cada vez mais sem sentido.

Na tecnologia, inovação quase sempre está ligada à eficiência. Para os artistas, a ineficiência faz parte do processo criativo.

Em resumo: as empresas de IA precisam dos artistas – e das criações que ainda nem existem. A recente polêmica em torno das imagens no estilo Studio Ghibli geradas pela OpenAI deixou isso evidente.

Além de desrespeitar a conhecida oposição de Hayao Miyazaki, cofundador do Studio Ghibli, ao uso de inteligência artificial, a campanha revelou algo mais profundo: não há tanto conteúdo icônico disponível quanto parece – e a IA já consumiu quase tudo.

Isso dá aos artistas um poder real. Juntos, eles podem estabelecer limites sobre como suas criações são usadas pelas empresas – ou até deixar esses modelos sem combustível criativo. Ao mesmo tempo, é importante não enxergar a IA generativa apenas como uma ameaça.

ARTISTAS X PROGRAMADORES

Adotar uma postura puramente defensiva pode levar os artistas a subestimarem o próprio valor e fazer com que deixem de explorar novas formas de expressão. Paradoxalmente, a avalanche de conteúdos genéricos gerados por IA pode aumentar o valor da arte feita à mão – livros, pinturas, esculturas, apresentações ao vivo –, tornando essas criações físicas ainda mais preciosas.

Também fica claro que empresas de inteligência artificial têm dificuldade de inovar sem o olhar criativo dos artistas. Basta ver os influenciadores digitais criados com IA: a maioria são cópias sem graça de pessoas reais.

artistas e IA: robô pintando um quadro
Crédito: Freepik

Por que não criar um influenciador com aparência de dragão ou de uma criatura alienígena totalmente nova? Sem alguém para trazer imaginação e emoção ao processo, o conteúdo gerado por inteligência artificial dificilmente inspira, encanta ou cria conexão. Como se diz na indústria criativa: não vira uma propriedade intelectual relevante.

A verdade é que artistas não precisam da IA generativa, mesmo que ela possa ser uma ferramenta poderosa. E é exatamente isso que me empolga: imaginar o que pode surgir quando essa tecnologia está nas mãos de verdadeiros criadores. São os artistas – e não os programadores – que vão descobrir novas formas de contar histórias e criar imagens que antes pareciam impossíveis.

O QUE ARTISTAS E IA TÊM EM COMUM

Tenho esperança de ver mais colaboração entre artistas e desenvolvedores de IA. Mas, para isso, é preciso reconhecer que, embora compartilhem um mesmo objetivo – criar algo novo e impactante —, os caminhos que cada um trilha são muito diferentes.

Na tecnologia, inovação quase sempre está ligada à eficiência. Para os artistas, a ineficiência faz parte do processo criativo. Rascunhar, experimentar, recomeçar: tudo isso é ignorado pelas plataformas de IA, mas é justamente o que dá origem a obras únicas. E, arrisco dizer, é o que torna o ato de criar tão prazeroso.

a avalanche de conteúdos genéricos gerados por IA pode aumentar o valor da arte feita à mão.

Criar é transformar imaginação em realidade e isso está nos detalhes, nas decisões, nas marcas que revelam o espírito do autor. Talvez seja essa a origem do desconforto entre arte e tecnologia: as duas têm mais semelhanças do que gostariam de admitir.

Ambas podem ser elitistas e fechadas, desconfiadas de quem está fora de seus círculos, universidades ou instituições. São movidas por ego e pela crença de que estão fazendo algo essencial para o futuro da humanidade.

Meu interesse por tecnologia surgiu enquanto fazia pesquisas para os meus livros – e nunca me esqueci de que a palavra “tecnologia” vem de “téchne”, termo grego que significa “sistema para fazer arte”.

Que o futuro da IA sirva para expandir horizontes, e não para nos aprisionar em debates que só enxergam o mundo em preto e branco.


SOBRE A AUTORA

Lauren Oliver é cofundadora e CEO da Incantor AI, empresa que trabalha na identificação, crédito e compensação dos donos de propriedad... saiba mais