Deepfakes do além: até onde a IA pode falar pelos mortos?

Usar a tecnologia para trazer de volta quem já se foi de forma concreta – ainda que digital – pode ser um tipo de desrespeito

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Nir Eisikovits e Daniel J. Feldman 4 minutos de leitura

Em 2021, Christopher Pelkey foi morto a tiros em um episódio de violência no trânsito. Quase quatro anos depois, em 8 de maio de 2025, durante a audiência de sentença de seu assassino, Pelkey apareceu novamente – desta vez, em forma de vídeo gerado por inteligência artificial.

A versão reconstituída da vítima fez uma declaração comovente, que levou o juiz a aplicar ao réu a pena máxima por homicídio culposo.

O caso não é isolado. Em abril, a BBC apresentou uma versão deepfake da escritora Agatha Christie para ministrar um "curso magistral de escrita". A falsa Christie ensinava técnicas de narrativa policial e prometia “inspirar a jornada literária” dos alunos.

A prática de “reanimar” os mortos com tecnologia de IA tem crescido rapidamente. No Centro de Ética Aplicada da Universidade de Massachusetts, em Boston, onde há anos se estuda o impacto moral da inteligência artificial, pesquisadores alertam: esses deepfakes de mortos levantam sérias questões éticas.

Mas, antes de discutir os dilemas morais, é preciso distinguir os chamados griefbotschatbots treinados com dados pessoais deixados por quem morreu, como postagens em redes sociais, e-mails e vídeos – das reanimações por deepfake.

Enquanto os griefbots tentam suavizar o luto de familiares imitando a forma de se comunicar dos falecidos, os deepfakes analisados aqui têm objetivos mais amplos: promover causas legais, políticas e educacionais.

O DILEMA DO CONSENTIMENTO

O primeiro impasse moral diz respeito ao consentimento: será que os mortos aprovariam o uso que se faz de suas imagens? Pelkey teria concordado com o roteiro escrito por sua família para seu avatar? Agatha Christie autorizaria sua imagem ministrando um curso?

Essas respostas só podem ser deduzidas por inferências – com base em atitudes e opiniões manifestadas em vida. Mas há quem defenda que, se os responsáveis legais pelo espólio autorizam, o debate estaria encerrado.

No entanto, mesmo com autorização, uma pergunta mais profunda se impõe: o que essas reanimações fazem com o legado e a reputação dos mortos? A imagem de quem já se foi não ganha força justamente por sua ausência?

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O líder ateniense Péricles, no século V a.C., já intuía isso. Em seu famoso Discurso Fúnebre, afirmava que a morte nobre eleva a reputação e apaga os pequenos erros – porque o mistério cresce após a partida. “Mesmo a virtude extrema dificilmente iguala a reputação dos mortos”, dizia.

Ao fazer com que os mortos voltem a aparecer, mesmo que digitalmente, estaríamos banalizando sua memória? Teriam essas aparições o poder de enfraquecer sua imagem, ao vinculá-los a eventos e contextos que nunca vivenciaram?

Além disso, o uso de avatares de falecidos em contextos políticos ou judiciais pode ser altamente persuasivo. Não é o mesmo que citar Churchill ou Roosevelt em um discurso. É colocá-los virtualmente ao seu lado, “falando” com voz e rosto.

A nostalgia, turbinada pela IA, ganha força de convencimento perigosa. Imagine o que a antiga União Soviética, que preservou o corpo de Lênin como relíquia, faria com um deepfake de seu líder icônico?

DEEPFAKES DE MORTOS NEM SEMPRE SÃO INOCENTES

Há quem argumente que essas recriações podem servir a propósitos nobres. E se Martin Luther King Jr. surgisse em vídeo pedindo moderação e união em meio à polarização política atual?

Mas será que sabemos o que ele pensaria sobre os dilemas contemporâneos? O fato de ter liderado uma luta histórica dá a outros o direito de convocar seu “fantasma digital” para causas atuais?

Mesmo que os objetivos sejam coerentes com os valores dos homenageados, o risco de manipulação emocional – e de usar sua imagem como ferramenta de convencimento – permanece.

Ao fazer com que os mortos voltem a aparecer, não estaríamos banalizando sua memória?

Em ambientes educacionais, as deepfakes podem parecer mais inocentes. Um avatar de Agatha Christie pode entusiasmar estudantes de escrita; um Einstein digital pode ajudar a descomplicar a relatividade.

Mas há um risco real de que essas representações se tornem o foco principal da atenção, eclipsando o conteúdo. O apelo visual e emocional pode reduzir a experiência a algo superficial, sem incentivar um mergulho mais profundo na obra e no pensamento original.

Os mortos permanecem vivos nas formas como reinterpretamos suas palavras e obras. É assim que os honramos. Usar a tecnologia para trazê-los de volta de forma concreta – ainda que digital – pode ser uma forma de desrespeito. Não apenas com eles, mas com nós mesmos: com nossa capacidade de lembrar, refletir e imaginar.

Este artigo foi publicado no "The Conversation" sob licença Creative Commons. Leia o artigo original


SOBRE O AUTOR

Nir Eisikovits é professor de filosofia e diretor do Centro de Ética Aplicada da Universidade de Massachusetts. Daniel J. Feldman é pe... saiba mais