Cannes Lions 2025: dois tsunamis e um ego ferido
A influência deixou de ser monopólio de poucos gênios para se tornar um ecossistema descentralizado de creators, dados, plataformas e comunidades

Por décadas, o Festival Internacional de Criatividade Cannes Lions foi o grande palco da criatividade publicitária.
Nunca estive por aqui, mas comecei a participar da festa no ano passado, quando o festival criou uma trilha dedicada à Creator Economy, vendeu ingressos mais acessíveis para creators e profissionais da indústria e finalmente abriu as portas dessa celebração para que pudéssemos espiar. Sim, espiar, participar, admirar – mas não exatamente ser o centro das atenções.
Apesar de a criatividade ser comemorada em todos os formatos e meios, ela nunca pareceu estar ameaçada. Me lembro de quando os publicitários, os nomes por trás das maiores agências – que, inclusive, batizavam essas empresas com seus próprios nomes – eram verdadeiros rockstars. A criatividade era o super poder desses “heróis".
Mas, em 2025, o tapete vermelho já não é só deles. E a sensação, estando aqui, é de que esse protagonismo está sendo ameaçado por dois tsunamis simultâneos: a inteligência artificial e os creators.
Creators com comunidades engajadas e narrativas autênticas estão desafiando o reinado das campanhas megaproduzidas. Se antes eles eram vistos como acessórios, agora os dados falam mais alto: ROI, lembrança de marca, intenção de compra, tudo melhora quando o creator está no centro. E não no centro como rosto da campanha, mas como força criativa e estratégica.
Kai Cenat, streamer nativo da Twitch, veio contar junto com a seguradora centenária State Farm sobre o comercial que criou, produziu e tudo mais que estão construindo juntos.
A Kantar trouxe dados mostrando que o ROI aumenta 38% quando os creators são usados de forma holística, não apenas pontual e taticamente. E que o Ad Recall no TikTok é 27% maior com conteúdo feito por creators em comparação a anúncios tradicionais.
Os publicitários, que sempre foram os mediadores entre marcas e cultura, agora estão sendo substituídos – ou, no mínimo, convidados a dividir seu protagonismo com creators, em um modelo cocriado.
Isso não é só uma questão de ego: é uma questão de modelo de negócios. O modelo brasileiro, que historicamente remunerou a criatividade pela comissão de mídia, se desmonta quando o creator passa a ser tanto a criatividade quanto a mídia.
CREATORS E IA AO MESMO TEMPO. É MUITA COISA PARA LIDAR
Os creators já estão aí faz tempo, chegando de fininho e tomando espaço. Agora, vem a IA, como um verdadeiro tsunami, redesenhando a lógica das demais etapas: produção, roteiro, finalização, criação, multiplicação de formatos, segmentação de audiência, customização de mensagem. Que tempos loucos para os publicitários.
A programação do festival trouxe poucos painéis realmente provocativos. O clima geral era mais de "fiquem tranquilos, a IA não vai substituir o seu superpoder, que é a sua humanidade, seu human touch'". Mas, mesmo nos painéis que não tinham IA como foco, ela apareceu. Virou piada entre os mediadores: “não temos como fugir disso…” (e lá vinha mais uma pergunta sobre IA).
Como é possível premiar influência sem os influenciadores? Como falar de social sem creators como protagonistas?
Enquanto isso, nas ativações das big techs, a IA foi o centro das narrativas. Não como ameaça, mas como futuro inevitável. Com cases reais e demonstrações práticas de processos criativos 100% integrados à inteligência artificial.
O espaço da Meta, por exemplo, sediou três sessões com Paulo Aguiar, creator brasileiro que começou como publicitário e frequenta o festival há mais de 10 anos. Mas, este ano, ele estava pela primeira vez como creator, justamente para mostrar como a IA transformou completamente seu processo criativo. Em todas as etapas.

Sobre inteligência artificial, ele comentou: “IA não é uma tendência passageira. Você precisa pensar em um relacionamento de longo prazo com ela. Trata-se de como ela pode fazer as coisas melhor, mais rápido e aprimorar seus processos.”
Mas, apesar da fala do Paulo, tenho a sensação de que muitos dos seus colegas publicitários ainda estão tentando entender como aceitar essa nova realidade – e como irão se relacionar com ela.
O PRIMEIRO (E TALVEZ ÚLTIMO) TRIBUTO A UM ROCKSTAR
Este ano, o Brasil foi eleito País Criativo do Ano – um feito inédito. Como parte da celebração, o festival homenageou Washington Olivetto, ícone absoluto da publicidade brasileira. Seu legado foi lembrado com trio elétrico nas ruas de Cannes, sob os olhares incrédulos dos franceses diante da nossa animação, além de homenagens na programação.
Mas aqui está o ponto emblemático: enquanto o palco celebrava um nome – e uma era –, o mercado já não funciona mais assim. O protagonismo criativo que antes pertencia a grandes nomes hoje é diluído, distribuído e cocriado.
A lógica mudou. A influência deixou de ser monopólio de poucos gênios para se tornar um ecossistema descentralizado de creators, dados, plataformas e comunidades.
E a contradição não para por aí: na própria categoria Social & Creators, nenhum ganhador dos Leões de Ouro ou do Gran Prix premiado tinha um creator real no centro da criação, nem com papel secundário.
Eles sequer aparecem, por que não existem nos cases escolhidos. Sim. Como é possível premiar influência sem os influenciadores? Como falar de social sem creators como protagonistas?
Enquanto celebramos o passado com merecida reverência, o presente bate à porta com novos protagonistas, novas linguagens e novas lógicas. A publicidade está sendo chamada a sair do palco – não para desaparecer, mas para cocriar com quem hoje realmente move cultura, conversa e consumo. Mas quem aceita o convite?