Vitória da Anthropic na questão dos direitos autorais não é bem o que parece

Empresas de tecnologia comemoram decisão sobre uso justo no treinamento de IA – mas uma leitura atenta revela grandes riscos jurídicos pela frente

Crédito: Anthropic

Chris Stokel-Walker 4 minutos de leitura

As big techs tiveram uma vitória importante nos EUA esta semana na disputa sobre o uso de conteúdos protegidos por direitos autorais no treinamento de modelos de IA.

Na terça-feira (dia 24), a Anthropic obteve uma decisão parcial favorável em um processo movido por três autores que acusam a empresa de incluir suas obras, sem autorização, em uma biblioteca usada no treinamento do modelo Claude.

O juiz William Alsup, do Tribunal Distrital dos EUA para o Distrito Norte da Califórnia, entendeu que o uso desse material pela Anthropic se enquadra no “uso justo” – e sua decisão tem peso.

“Autores não podem impedir, de forma legítima, que suas obras sejam usadas para fins de aprendizado ou treinamento”, escreveu Alsup. “Todos leem textos e depois escrevem os seus próprios. Pode até ser necessário pagar para acessar um texto pela primeira vez, mas cobrar toda vez que alguém o lê, se lembra ou se inspira nele seria impensável.”

O juiz classificou o treinamento do Claude como “extremamente transformador”, comparando o modelo a “qualquer leitor que aspira se tornar escritor”.

Essa linguagem ajuda a explicar por que lobistas do setor estão chamando a decisão de uma grande vitória. E, em parte, ela realmente é.

DECISÃO LEVA EM CONTA O “USO JUSTO”

“É, de fato, uma vitória significativa para o futuro do treinamento de IA”, afirma Andres Guadamuz, especialista em propriedade intelectual da Universidade de Sussex, no Reino Unido, que acompanha de perto casos envolvendo inteligência artificial e direitos autorais.

Mas ele faz uma ressalva importante: “isso pode acabar sendo um problema para a Anthropic, dependendo do desfecho da questão da pirataria – e essa parte ainda está longe de ser resolvida”. Em outras palavras, não é tão simples quanto as empresas gostariam.

“A decisão sobre uso justo pode parecer ruim para os criadores à primeira vista, mas ainda não é palavra final sobre o assunto”, lembra Ed Newton-Rex, ex-executivo da indústria de IA hoje à frente da Fairly Trained, organização que certifica empresas que respeitam os direitos dos criadores.

Créditos: Muhammed Ensar/ Tara Winstead/ Pexels/ MicroStockHub/ iStock

O caso ainda deve ser julgado por instâncias superiores – e Newton-Rex já aponta falhas na argumentação. “O juiz afirma que o treinamento não desestimula a criação e compara o aprendizado da IA ao humano – argumentos relativamente fáceis de refutar”, diz. “No geral, é uma má notícia para os criadores, mas essa disputa está só começando.”

Apesar de a decisão reconhecer o uso de obras protegidas para treinar modelos de IA como uso justo, outras partes não foram tão favoráveis à Anthropic. Guadamuz destaca que a decisão se baseia em “um argumento sólido de uso justo, considerando o caráter transformador do treinamento por IA”. 

Segundo ele, o juiz aplicou cuidadosamente os quatro critérios legais (segundo as leis norte-americanas) para uso justo. Essa decisão pode influenciar a forma como casos semelhantes serão tratados no futuro.

“Talvez estejamos começando a ver o surgimento de uma nova interpretação legal: quando há acesso legítimo a uma obra, isso pesa a favor do uso justo. Já o uso de bibliotecas piratas não”, explica.

DIREITOS AUTORAIS E PIRATARIA

O ponto principal é que não foi uma vitória completa para a Anthropic, exatamente por conta da questão do acesso legítimo. Afinal, assim como outras empresas do setor, ela teria utilizado materiais obtidos em sites de pirataria para facilitar o treinamento de sua IA – algo que, claramente, incomodou o tribunal

“Esta decisão questiona seriamente se algum réu poderia justificar o download de obras em sites piratas – em vez de obtê-las legalmente – como algo compatível com o uso justo”, escreveu Alsup, referindo-se à suposta pirataria de mais de sete milhões de livros pela Anthropic.

Esse ponto, por si só, pode resultar em indenizações bilionárias, com valores a partir de US$ 750 por obra – e esse julgamento ainda está por vir.

A decisão sobre uso justo ainda não é palavra final sobre o assunto.

Portanto, embora as empresas de tecnologia tenham motivos para comemorar (graças ao precedente estabelecido sobre uso justo), a mesma decisão também indica que, no futuro, elas podem ter que gastar muito mais para obter legalmente os materiais de treinamento.

A OpenAI, por exemplo, já afirmou que licenciar todo o conteúdo necessário para treinar seus modelos seria praticamente inviável.

Joanna Bryson, professora de ética em inteligência artificial da Hertie School, na Alemanha, aponta que a decisão “definitivamente não” representa uma vitória ampla para as big techs.

“Primeiro, não é uma decisão da Suprema Corte. Segundo, só vale em uma jurisdição: os Estados Unidos”, destaca. “E ainda resta a dúvida se o que foi produzido pelo Claude pode mesmo ser considerado transformador – do ponto de vista jurídico.”


SOBRE O AUTOR

Chris Stokel-Walker é um jornalista britânico com trabalhos publicados regularmente em veículos, como Wired, The Economist e Insider saiba mais