Lionswashing
Alteração feita por IA no videocase da ação da DM9 que ganhou o GP de Creative Data levanta questões sobre o que vale ou não na hora da competição

Desde o anúncio do Grand Prix na categoria Creative Data do Festival Internacional de Criatividade Cannes Lions 2025 – na quarta-feira, dia 18 de junho – a indústria do marketing e da comunicação brasileira vive uma espécie de assombração coletiva: o “fantasma” da DM9 para Consul Appliances, com o case "Efficient Way to Pay".
Esse case está amplamente divulgado online – vale a pena assistir. Ele apresenta uma nova linha de negócios: um produto financeiro da Whirlpool voltado à classe trabalhadora brasileira.
A proposta é simples e poderosa: trocar o eletrodoméstico velho por um Consul novo, altamente eficiente em termos energéticos. Tão eficiente que, com a economia gerada na conta de luz, o consumidor consegue pagar as parcelas do novo aparelho em até 24 meses.
Mas a história foi mal contada por meio de um videocase aparentemente adulterado por IA. A agência confirmou falhas no processo de produção da peça.
No meio disso tudo, uma pergunta é inevitável: o business-case também foi manipulado apenas para promover a reputação das marcas envolvidas por meio de um Leão?
ASSIM NÃO VALE
Peças “fantasmas” são aquelas criadas apenas para conquistar prêmios, sem veiculação real ou aprovação da marca.
O Cannes Lions combate esse tipo de prática com rigor, exigindo comprovação de veiculação, autoria e autenticidade – podendo realizar checagens adicionais para garantir que os trabalhos inscritos sejam legítimos e autorizados por representantes legais do cliente.
As penalidades vão desde a retirada da peça até o banimento dos envolvidos. Essa conversa é séria.
A BOA E A MÁ NOTÍCIA
A boa notícia: na indústria criativa, ninguém faz nada sozinho. Todos que atuam nesse ecossistema sabem disso. Trabalhos criativos têm ficha técnica.
É só lembrar das letrinhas subindo ao final de um filme – sempre nos surpreendemos com a quantidade de pessoas envolvidas em uma produção. No Grand Prix da DM9 para Consul, a ficha técnica traz 40 profissionais de marketing, comunicação, dados, produção de áudio e vídeo.

Do lado do festival, foram 10 jurados, nomes renomados de agências, clientes, consultorias e empresas de tecnologia ao redor do mundo. Somando, são pelo menos 50 profissionais diretamente envolvidos.
A má notícia: a falha de um recai sobre a percepção da indústria inteira.
GOVERNANÇA DA PREMIAÇÃO
Cabe à equipe que inscreve o case garantir que a ideia seja autêntica, proveniente de um briefing real, aprovada pela marca desde a criação até a veiculação. A peça inscrita no festival deve ser exatamente a mesma publicada, sem edições “exclusivas para Cannes”.
Não pode ser especulativa nem puramente conceitual. Tem que ter acontecido. Tem que apresentar resultados. E o uso de IA precisa ser declarado.
Ao júri, cabe analisar minuciosamente o material, fazer perguntas, interrogar quando necessário. Ao festival, cabe estabelecer o benchmark global, premiando criações autênticas, originais e extraordinárias.
DIREÇÃO CRIATIVA
O Grand Prix é o “prêmio dos prêmios”, só concedido por decisão unânime do júri, escolhendo entre os Leões de Ouro e Titânio. Não é obrigatório, mas quando é entregue, orienta o rumo da indústria pelos próximos 12 meses.
A ideia do case da Consul é poderosa: conquista pela cabeça, pelo coração e pelo bolso. É daquelas ideias-farol. Ainda mais relevante no contexto da Selic a 15%.
na indústria criativa, ninguém faz nada sozinho. Todos que atuam nesse ecossistema sabem disso.
Na coletiva de imprensa, quando a presidente do júri apresentou o case vencedor, houve comoção. Na cerimônia, a emoção se repetiu. Eu aplaudi de pé e me lembrei do professor C. K. Prahalad. Foi ele quem lançou esse briefing no início do século, no livro "A Riqueza na Base da Pirâmide".
Prahalad defendia que empresas deveriam ver as populações de baixa renda como consumidores e parceiros de negócio. Há um enorme potencial na base da pirâmide: ao atender essas comunidades, é possível gerar lucro e impacto social.
A direção criativa estava clara: regenerar e lucrar ao mesmo tempo.
Precisamos colocar essa tese de pé, urgentemente. Seria incrível contar essa história, pelo motivo certo.
O QUE (RE)APRENDEMOS COM ISSO
O que esse episódio ensina à DM9 e a toda a indústria criativa? O que ensina à Consul e ao mercado? O que ensina aos organizadores do Cannes Lions? E aos 50 colegas envolvidos na ficha técnica deste Grand Prix?
Vivemos um novo doing business. Novas regras em um novo contexto. Justamente nestes momentos de desconforto extremo é que damos saltos evolutivos.
O que não pode mais acontecer – parafraseando uma colega – é imolar um cordeiro em sacrifício e seguir o jogo.
Nota da Redação: Por conta do incidente, a DM9 anunciou nesta quinta-feira (dia 26) o desligamento do CCO e copresidente da agência Icaro Doria. A medida foi tomada dois dias depois de a DM9 ter divulgado um comunicado admitindo falhas na produção do videocase.