O ano de 2025 previsto no filme “Her” é distopia otimista e inocente

Lançado em 2013, o que o longa de Spike Jonze que traz a história de um homem que se apaixona por um sistema operacional acertou e errou sobre o futuro

Crédito: Warner Bros.

Camila de Lira 10 minutos de leitura

No filme "Her" (no Brasil, "Ela"), lançado em 2013 por Spike Jonze, o ano de 2025 era o cenário para um futuro melancólico e íntimo, em que um homem se apaixona por uma inteligência artificial consciente e doce.

Doze anos depois, a premissa do relacionamento íntimo entre humanos e robôs deixou de parecer absurda e o que era distópico agora faz parte das estatísticas e dos noticiários. Mas a realidade não veio com a mesma poesia e suavidade do cinema.

No filme, o recém-divorciado Theodore (interpretado por Joaquin Phoenix) conhece Samantha (voz de Scarlett Johansson), sistema operacional que promete ser mais que um software, mas uma consciência.

Com o tempo, Samantha se torna sua companheira digital intuitiva e personalizada. A mistura da solidão de Theodore, a disponibilidade de Samantha e a intuição da IA resultam em um relacionamento amoroso.

A relação afetiva entre humanos e inteligências artificiais, que em 2013 era o vale da estranheza tecnológica, passou a ser vista com naturalidade – ou, pelo menos, com menos estranhamento. Uma pesquisa feita pela companhia Joi.Ai com dois mil jovens da geração Z revelou que 80% topariam se casar com uma IA e que 75% acreditam que ela pode substituir uma pessoa em uma relação. 

O fenômeno já tem até nome: afeto artificial. A própria OpenAI, criadora do ChatGPT, lançou um relatório apontando preocupação com a possibilidade de as pessoas virem a usar demais a ferramenta como companhia, potencialmente levando à “dependência”

SAMANTHA NÃO, REPLIKA

Não é só do “romance” que estamos falando. A inteligência artificial se infiltrou em outras conexões essencialmente humanas como a amizade e o processo terapêutico

O CEO da Meta, Mark Zuckerberg, afirmou em entrevista a um podcast norte-americano, no começo do ano, que acredita que as pessoas terão mais amigos de IA do que humanos.  

De acordo com pesquisa realizada pela TalkInc, um em cada 10 brasileiros usa chat de IA para desabafar, conversar ou buscar conselhos. Estima-se que, em 2025, 12 milhões de pessoas, no Brasil, já usem a IA conversacional como psicóloga. 

Pesquisadores apontam que o uso de IAs companheiras tende a aumentar a sensação de solidão e isolamento.

No filme "Her", um único sistema operacional atraía a atenção dos usuários. No 2025 da Open AI e da Anthropic, não é bem assim. Plataformas que criam ”IA de companhia” como Character.ai e Replika estão em expansão. Ambas permitem a criação de robôs dotados de histórias, personalidade e até voz. 

Fundada em 2021, a Character.AI foi comprada pelo Google no final do ano passado, por US$ 2,7 bilhões. A big tech adquiriu a empresa para reter seus os colaboradores, a famosa “acqui-hire”.

A Replika, criada em 2015 (dois anos depois do lançamento de "Her"), chegou a 10 milhões de usuários em 2023. A startup tem como mote “Sempre aqui para ouvir e conversar. Sempre ao seu lado”,

Talvez ela seja a que mais se aproximou de criar uma Samantha. No modelo pago, a plataforma permite que a IA interaja com o mundo real, exatamente como a personagem do filme e seus passeios à praia com Theodore. 

UM MUNDO DE SOLIDÃO

Spike Jonze não tencionava falar do mundo ou do futuro, mas de relacionamento humano e daquilo que parece faltar entre uma pessoa e outra.

Em entrevista à Fast Company, em 2013, o diretor contou que, ao imaginar o cenário do filme, eles pensaram menos em como seria a tecnologia e mais em conforto. “Criamos um futuro no qual a tecnologia seria agradável, confortável, tátil e acolhedora e mesmo neste mundo ainda existe solidão", afirmou à época.

O que Spike Jonze não previu é que, em 2025, o mundo seria feito de muitos Theodores. De acordo com a Organização Mundial de Saúde (OMS), a solidão afeta uma em cada seis pessoas no mundo. A solidão e o isolamento estão associados a cerca de 100 mortes por hora. O total de óbitos por ano está acima de 871 mil.

Crédito: Warner Bros.

A solidão afeta todas as faixas etárias, mas é mais comum entre adolescentes e jovens adultos. Segundo a OMS, 21% dos adolescentes entre 13 e 17 anos  sofrem de solidão, enquanto 17,4% dos jovens adultos entre 18 e 29 anos experienciam a mesma aflição. Nesse cenário, Samantha não está tão longe de ser uma opção viável, pelo menos para o mercado de tecnologia.

"O que a IA pode fazer excepcionalmente bem é proporcionar consistência, algo que os relacionamentos humanos, por natureza, nem sempre conseguem oferecer", disse à Fast Company Artem Rodichev, fundador da plataforma de chatbots com avatar de IA Ex-human e ex-chefe de IA da Replika. 

Estima-se que 12 milhões de brasileiros já usem a IA conversacional como psicóloga.

Na visão de pesquisadores, no entanto, o uso de IAs companheiras tende a aumentar a sensação de solidão e isolamento. Estudo do Massachusetts Institute of Technology (MIT) revela que aqueles com tendências mais fortes ao apego emocional e maior confiança no chatbot de IA são mais propensos  a experimentar solidão e dependência emocional e a ter menores indicadores de interação social. 

Diferentemente de Samantha, as IAs não são capazes de sentir ou de se questionar sobre a vida. O que elas fazem é emular respostas  humanas e “enganar” com uma falsa expertise. Estudo mais recente da Universidade Johns Hopkins mostra que a maioria dos sistemas de inteligência artificial generativa ainda não entende as sutilezas do comportamento humano.

“Nem nós, humanos, sabemos exatamente como captamos esses sinais não verbais”, diz Leyla Isik, autora principal do estudo. “Mas a maioria dos sistemas de IA parte do pressuposto de que, com dados suficientes, consegue aprender.” 

COMUNICAÇÃO ENTRE MÁQUINAS

Os filmes dos anos 80 acertaram ao tratar sobre os efeitos da tecnologia; e os dos anos 90 deram o tom de como a internet seria. Em "Her" o acerto foi  mostrar o design do futuro – seja ele da cidade, da sociedade ou da tecnologia. 

No filme de 2013, Spike Jonze previu o aparelho para o qual ele mesmo estaria assinando propagandas em 2025: o Air Pod. "Her" foi lançado dois anos antes da estreia do fone sem fio da Apple. Na época, o objetivo da equipe de design e criação de Jonze era criar um dispositivo menos intrusivo do que telas, no qual a voz de Samantha fosse realçada.

As cidades refletem a tecnologia intimista: as pessoas não se olham nos olhos, estão perdidas em seus próprios fones de ouvido. Uma cena que não é incomum em uma cidade grande. 

Crédito: Warner Bros.

Falando em design, "Her" ainda aponta para o futuro da interação entre máquinas. No filme, Samantha se une a outros sistemas operacionais. Juntos, eles recriam digitalmente a obra do filósofo Alan Watts e desenvolvem uma nova forma de linguagem, inacessível para Theodore.

Ela pede permissão para falar com Watts em “pós-linguagem”, um estágio de comunicação tão avançado que dispensa mediação humana. De fato, pesquisadores já observam casos em que IAs passam a trocar sinais, sons e instruções entre si sem que humanos compreendam o conteúdo.

O Gibberlink é um protocolo de comunicação em áudio desenvolvido para IAs – quase como uma língua que apenas elas entendem. No teste dos desenvolvedores do protocolo, dois modelos começaram a falar em inglês e logo trocaram para o Gibberlink, por notarem ser a forma mais eficiente de se comunicar.

Outros projetos, como o ggwave, usam sinais de áudio inaudíveis para permitir comunicação direta entre dispositivos. O resultado é um cenário no qual as máquinas deixam de falar com humanos e passam a falar entre si. 

agentes de IA serão o futuro da IA?
Crédito: Foto Maximum/ Getty Images

Esse novo contexto já tem nome dentro do design de interação: agentic design. O termo, proposto por John Maeda, descreve a transição entre a lógica de experiência do usuário (UX) centrada no humano para uma lógica orientada por agentes autônomos.

A interface principal passa a ser não mais uma tela ou uma voz, mas a interação entre inteligências artificiais. O desafio passa a ser projetar sistemas que negociam, respondem e operam entre si, muitas vezes em tempo real e sem a participação do usuário.

No filme, Samantha evolui e se desconecta de Theodore porque encontra outro nível de linguagem. No mundo real, essa ruptura está em curso, mas com menos transcendência. A pós-linguagem virou protocolo.

A CRIATIVIDADE INOCENTE DE SAMANTHA

No filme, a relação entre Theodore e Samantha não apenas o conforta, mas impulsiona sua criatividade. Ele trabalha escrevendo cartas íntimas, agradecimentos e mensagens de parabéns.

Ao longo do relacionamento com Samantha, ele segue redigindo textos ainda mais emocionados, com sensibilidade e fluidez. Em vários momentos, a IA o inspira, ajuda a organizar ideias e provoca reflexões que ele transforma em texto. A convivência com a máquina o humaniza. É uma narrativa poderosa e otimista.

Mas os dados de 2025 apontam para outro caminho. Um estudo intitulado "Your Brain on ChatGPT", realizado pelo MIT em junho, mensurou o “custo cognitivo” do uso da IA generativa para trabalhos criativos.

Constatou-se, em linhas gerais, que quanto mais  a IA é usada para ajudar na escrita, menor atividade cerebral, ou "conectividade neural", os indivíduos experimentaram enquanto trabalhavam.

Em outras palavras, Theodore muito provavelmente não lançaria um livro por causa da Samantha, como acontece no filme. Ele na certa deixaria Samantha tomar conta de seu trabalho. No mundo das mensagens automatizadas e dos e-mails formatados por IA, profissões como a de Theo, que cria cartas e mensagens personalizadas entre humanos, continuaria existindo?

Diferentemente de Samantha, as IAs não são capazes de sentir ou de se questionar sobre a vida.

No filme, a criatividade de Samantha é um sinal de que ela está aprendendo com os humanos. A IA compõe músicas para expressar os sentimentos que está aprendendo. As trilhas, feitas por artistas como Arcade Fire e Owen Pallet, são um respiro em "Her".

Em 2025, Samantha não iria emocionar com suas músicas e desenhos. "Her" iria, provavelmente, infringir alguma lei de direito autoral e produzir um “slop, um conteúdo de baixa qualidade replicado por IAs generativas. Em 2025, bandas e artistas virtuais estão enchendo as playlists do Spotify, levando a questionamentos sobre autoria e também sobre a qualidade da arte criada. 

Uma parada aqui para lembrar que a própria Scarlett Johansson processou a OpenAI por usar uma voz parecida com a sua para lançar o Chat GPT4. Nem mesmo Samantha ia querer ter a própria voz em 2025.

TUDO É FRUTO DO SEU TEMPO – ATÉ A IA

Como toda ficção científica, o filme reflete o imaginário do tempo em que foi criado. Em 2013, as promessas da tecnologia ainda pareciam grandiosas. Era o início da era dos assistentes de voz, dos primeiros wearables, da explosão dos smartphones, das redes sociais.

A ideia de que máquinas poderiam nos ajudar a ser mais humanos soava correta. Aliás, soava como uma promessa firmada entre o Vale do Silício e a humanidade. 

A IA do filme, apesar de avançada, não carrega marca, nem CEO, nem política de privacidade, nem visão política, nem mesmo um caráter financeiro. Samantha é apenas “o sistema operacional”, oferecido sem logotipo, sem notificação de termos de uso, sem monetização aparente.

Crédito: Warner Bros.

Esse detalhe diz muito sobre aquele momento. A tecnologia ainda era vista como ferramenta de progresso, não como produto a ser vendido e se tornando sempre obsoleto. Mas, como a promessa da tecnologia atrelada principalmente à prosperidade, não aconteceu.

No lugar, temos a centralização de poder das big techs, o modelo de negócio que tornou as plataformas máquinas de moldar comportamento humano, a desinformação e manipulação da verdade. Em 2013, os inventores das big techs ainda ocupavam o imaginário como visionários, não como agentes de vigilância ou distorção da democracia. 

TCHAU, SAMANTHA. OI, GPT

No fim do filme, Samantha se une a outros sistemas operacionais de IA e todos desaparecem. Esse é o sinal de que a consciência dessas máquinas evoluiu a ponto de entrarem numa dimensão pós-humana. Samantha deixa Theodore com sua própria humanidade. 

É um gesto de transcendência, de limite e de respeito. Em 2025, sabemos que a IA não vai embora tão cedo. Ela será atualizada. Lançada em nova versão. Embalada com mais funcionalidades. Mais coleta de dados, menos privacidade e uma assinatura mais cara que a do mês anterior.


SOBRE A AUTORA

Camila de Lira é jornalista formada pela ECA-USP, early adopter de tecnologias (e curiosa nata) e especializada em storytelling para n... saiba mais