O novo romance corporativo

Como a computação de ambiente redefine as narrativas do futuro

Crédito: Dynamic Wang/ Unsplash

Guido Sarti 6 minutos de leitura

Em uma tarde de maio de 2025, Sam Altman e Jony Ive anunciaram ao mundo algo que parecia saído de um roteiro de ficção científica: a aquisição da startup "io" por US$ 6,5 bilhões.

Não era apenas mais uma transação bilionária no Vale do Silício, mas mais um capítulo na construção de narrativas grandiosas sobre como interagiremos com a tecnologia.

Ali, na confluência entre o design da Apple e a inteligência artificial da OpenAI, nascia outro episódio do que podemos chamar de "romance corporativo" da era digital.

O nome "io" carrega múltiplas interpretações. Pode ser uma referência técnica ao conceito de input/ output, fundamental na computação, ou uma alusão mais poética à mitologia grega, onde Io era uma sacerdotisa condenada a vagar pelo mundo até encontrar sua forma verdadeira.

Se a segunda interpretação for a correta, a metáfora é quase perfeita: estamos todos vagando em busca da interface ideal entre humano e máquina. E talvez a resposta esteja na invisibilidade da computação de ambiente.

A REVOLUÇÃO SILENCIOSA DA COMPUTAÇÃO DE AMBIENTE

Enquanto o mundo se fascina com chatbots e assistentes virtuais, uma transformação mais sutil avança nos bastidores da tecnologia. A computação de ambiente – ou ambient computing – representa uma mudança estrutural na nossa relação com os dispositivos digitais.

A proposta é abandonar botões e comandos para viver em um mundo onde a tecnologia antecipa necessidades e age de forma mais intuitiva.

O conceito, popularizado por Mark Weiser nos anos 1990, finalmente encontra sua janela de oportunidade. Em 2025, três forças convergem: a IA conversacional, o processamento de dados na borda (edge computing) e a proliferação de sensores inteligentes. A questão é se essa convergência conseguirá entregar a experiência prometida.

Crédito: Approach Studio

A diferença fundamental está na filosofia de interação. Enquanto os smartphones nos obrigaram a adaptar nosso comportamento à tecnologia – olhando para telas, tocando superfícies de vidro, aprendendo gestos específicos –, a computação de ambiente propõe inverter essa lógica. A tecnologia passaria a se adaptar a nós, compreendendo padrões, antecipando desejos e agindo de forma proativa.

O cenário idealizado é sedutor: acordar em uma manhã em que a casa já ajustou a temperatura com base na previsão do tempo e nos padrões de sono. O café estaria pronto no momento exato, não por programação, mas porque o sistema aprendeu nossos hábitos. O carro, já aquecido, com a rota otimizada considerando trânsito e compromissos do dia.

Mas, entre a promessa e a realidade, existe um abismo de complexidade técnica e de questões de privacidade ainda sem resposta.

O STORYTELLING COMO FERRAMENTA DE PODER

Por que essa aquisição ressoa de forma tão particular? A resposta está na habilidade narrativa de Sam Altman, um dos contadores de histórias corporativas mais eficazes da nossa era.

Em suas reflexões públicas, Altman revela a anatomia de como se constrói um romance corporativo moderno. "Começamos a OpenAI quase nove anos atrás porque acreditávamos que a IAG [inteligência artificial geral] era possível, e que poderia ser a tecnologia mais impactante da história humana."

Essa frase reúne todos os elementos de uma narrativa épica: a jornada heroica (nove anos de trabalho), a visão grandiosa (a tecnologia mais impactante da história) e o propósito transcendente (beneficiar a humanidade).

Não é apenas uma empresa vendendo produtos; é uma missão civilizatória sendo construída em tempo real. Ou, pelo menos, é assim que a história é contada.

O romance corporativo da era digital toca na necessidade de narrativas que deem sentido ao caos tecnológico que nos cerca.

O romance corporativo da era digital funciona porque toca em algo profundamente humano: nossa necessidade de narrativas que deem sentido ao caos tecnológico que nos cerca.

Quando Altman fala sobre "deixar nossa marca na história" ou sobre construir "superinteligência no verdadeiro sentido da palavra", ele não está apenas descrevendo produtos futuros – está criando uma mitologia onde cada funcionário, investidor e usuário se torna parte de uma saga épica.

A aquisição da io materializa essa narrativa. Jony Ive, o designer por trás dos produtos icônicos da Apple, junta-se ao CEO da OpenAI para criar algo que promete ser "totalmente novo".

É a convergência entre forma e função, entre estética e inteligência, entre o tangível e o invisível. Resta saber se a realidade acompanhará a retórica.

A INTERFACE QUE DESAPARECE

O que torna a parceria Altman-Ive interessante é a promessa de criar dispositivos que transcendam a própria noção de dispositivo. Em entrevistas, eles falam de "companheiros" de IA que estarão conscientes de nosso ambiente e da nossa vida, que poderão ser colocados no bolso ou sobre a mesa, mas que não serão "um novo telefone nem algo vestível".

Essa descrição, aparentemente contraditória, revela a essência da computação de ambiente: a interface que desaparece. Não se trata de adicionar mais telas à nossa vida, mas de tornar a interação com a tecnologia mais natural. O objetivo é criar sistemas que compreendam contexto, emoção e intenção sem que precisemos explicitar nossos desejos.

"Her", filme de Spike Jonze (Crédito: Warner Bros.)

A inspiração no filme "Her", de 2013, não é coincidência. Spike Jonze imaginou um futuro em que a inteligência artificial se torna um companheiro emocional genuíno. A diferença é que, 12 anos depois, temos tecnologia mais avançada, mas ainda enfrentamos limitações significativas na compreensão de contexto e de nuances humanas.

As tendências de 2025 apontam para interfaces multimodais que combinam voz, gestos, texto e análise de sentimentos. A IA emocionalmente inteligente deixa de ser apenas conceito futurista e se torna realidade emergente.

Sistemas que reconhecem frustração na voz, detectam cansaço nos padrões de movimento e ajustam respostas conforme o estado emocional já existem em laboratórios. A questão é quando – e se – funcionarão de forma confiável no mundo real.

O FUTURO INVISÍVEL

A revolução da computação de ambiente não está no que podemos ver, mas no que não precisamos mais ver. Quando a tecnologia funciona perfeitamente, ela se torna invisível.

O termostato que nunca precisamos ajustar, o sistema de som que sempre toca a música certa, o assistente que agenda reuniões sem que peçamos – essa é a promessa de um mundo onde a tecnologia serve à vida humana, em vez de dominá-la.

Crédito: Freepik

Sam Altman e Jony Ive não estão apenas criando produtos; estão escrevendo narrativas sobre o futuro da relação entre humanidade e tecnologia. Narrativas em que a sedução não vem de telas brilhantes ou notificações constantes, mas da elegância silenciosa de sistemas que nos compreendem.

Se essas promessas se concretizarão é outra história. O que sabemos é que, nesse novo mundo que está sendo construído, o poder não estará nas mãos de quem controla as interfaces, mas de quem conseguir fazer as interfaces desaparecerem completamente.

Talvez, no final das contas, essa seja realmente a forma mais sofisticada de tecnologia que já imaginamos: aquela que nos permite ser mais humanos, não menos. Ou, pelo menos, é assim que a história está sendo contada.


SOBRE O AUTOR

Guido Sarti é sócio da Galeria Ag e atua como professor coordenador na Miami AdSchool. Foi Head de Novos Negócios e Convergência na Gl... saiba mais