Benzedeiras: a tecnologia ancestral de ciência aberta sem wi-fi

Uma reflexão sobre inovação, memória e o saber negro como patrimônio tecnológico brasileiro

Créditos: Ehsan Ahmadnejad/ Pexels/ Freepik

Talita Azevedo 4 minutos de leitura

Quando falamos de inovação e tecnologias, tendemos a projetar um cenário futurista. Robôs e carros voadores são quase um imaginário obrigatório. Obcecados pelo próximo aplicativo, pela próxima inteligência artificial, pelo próximo dispositivo que promete revolucionar nossas vidas. 

Mas o que você me diria se eu te contasse que uma das tecnologias mais sofisticadas do Brasil é milenar e funciona perfeitamente? E se ela estivesse ali, escondida nas mãos calejadas de mulheres negras que, há gerações, curam corpos e almas com apenas palavras, ervas e fé? 

No coração do bairro paulistano do Bixiga, onde os prédios crescem como cogumelos depois da chuva e tentam apagar qualquer vestígio de um passado incômodo, Tia Eliza de Luca mantém viva uma tradição que é, ao mesmo tempo, resistência política e inovação tecnológica. 

Existe um ponto cego na narrativa global sobre inovação: a incapacidade de reconhecer que nem toda tecnologia é digital. As "benzedeiras" operam dentro de um framework sofisticado de pensamento sistêmico, integrando corpo, território, saúde mental, bem-estar espiritual e coesão social em uma prática absolutamente robusta.

Esse conhecimento é resultado de séculos de desenvolvimento iterativo, testado, refinado e adaptado por gerações. A partir da lógica empresarial, trata-se de um modelo de inovação descentralizado, antifrágil e sustentável – baseado em recursos locais, escalável, de baixo custo e de altíssimo impacto social.

UM CÓDIGO FONTE DE CURA E RELAÇÕES MAIS HUMANAS

Para entender o trabalho das benzedeiras como tecnologia, te convido a expandir nossa definição do que é inovação. Se tecnologia é a aplicação de conhecimento científico para resolver problemas práticos, então o que fazem essas mulheres é pura tecnologia de ponta. 

Elas dominam um sistema complexo que envolve:

  • Conhecimento botânico (quais ervas usar para cada mal)
  • Psicologia aplicada (como acolher e tranquilizar)
  • Farmacologia natural (dosagens e combinações)
  • Gestão de relacionamentos (mediação de conflitos familiares) 
  • Urbanismo social (como criar espaços de acolhimento comunitário).

Tia Eliza é um um algoritmo humano que combina intuição, experiência e conhecimento ancestral. E o melhor: os prompts não precisam de wi-fi. A interação humana basta como start.

Preservar a memória é muitas vezes visto como um exercício de preservação cultural. Mas, na prática, memória é infraestrutura. É armazenamento de dados em sua forma mais ancestral. É transferência de conhecimento em um modelo open-source, amplamente distribuído e resiliente.

Quantas soluções para os desafios complexos que enfrentamos hoje – da saúde mental às mudanças climáticas – já estão presentes nesses saberes ancestrais, mas seguem invisibilizadas?

O APAGAMENTO HISTÓRICO É A BORRACHA DO PROTAGONISMO DE CADA BRASILEIRO

Há alguns meses, a Mobilização Estação Saracura/ Vai-Vai tem defendido o direto à memória como um direito fundamental.

logotipo do coletivo Saracura/ Vai-Vai

A região tem sido alvo da construção de um metrô que tem como espaço mais de 60 mil artefatos encontrados a partir de escavações, abrigando saberes milenares que certamente constituem a percepção antropológico-científica de muita gente ao redor do Brasil. 

Cada capela que cai, cada benzedeira que se vai sem passar o conhecimento adiante, é um servidor que queima, uma biblioteca que pega fogo.

A INOVAÇÃO É UMA OUROBOROS: É A CICLICIDADE DE MOVIMENTO

Precisamos repensar nossa relação com a inovação. Não se trata de romantizar o passado, mas de reconhecer que algumas tecnologias ancestrais foram desenvolvidas para durar, para se adaptar, para evoluir de forma sustentável. Enquanto nossos aplicativos ficam obsoletos em dois anos, o conhecimento das benzedeiras atravessa séculos.

Tia Eliza, aos 64 anos, continua inovando. Ela adaptou sua prática às demandas contemporâneas – atende pessoas de todas as classes sociais, lida com problemas modernos como depressão e ansiedade, usa suas redes de contato para conseguir trabalho e moradia para quem precisa. Ela é uma startup social que opera há 26 anos com crescimento sustentado e impacto social mensurável.

Talvez a maior inovação que podemos fazer hoje seja criar pontes entre essas tecnologias ancestrais e os recursos contemporâneos. Documentar esse conhecimento, apoiar essas mulheres, reconhecer oficialmente seu trabalho como patrimônio tecnológico brasileiro.

Imagine só: e se criássemos um programa de residência em que desenvolvedores de tecnologia passassem temporadas com benzedeiras, aprendendo sobre gestão de comunidades e resolução de conflitos? A verdadeira inovação brasileira acontece a partir daí (!!).

COMO A TECNOLOGIA PODE CRIAR ACERVO À MEMÓRIA?

Parafraseando Emicida, "infeliz do povo que não sabe de onde veio". Mas mais infeliz ainda é o povo que não reconhece a inovação que já tem. Enquanto corremos atrás do futuro, nossas benzedeiras seguem lá, inovando no presente, preservando o passado, construindo pontes entre mundos.

Elas são nossas primeiras hackers, nossas primeiras designers de experiência, nossas primeiras especialistas em big data emocional. São a prova viva de que a inovação mais revolucionária, às vezes, é aquela que nunca esqueceu de onde veio e mantém seus pilares de missão, visão e valores intactos mediante à ação do tempo. 

Enquanto seus conhecimentos resistem aos algoritmos do esquecimento, elas nos lembram que o futuro da tecnologia talvez não esteja somente nos laboratórios do Vale do Silício, mas nas mãos calejadas de mulheres que transformaram a dor em cura, a resistência em inovação, a memória em futuro – e em presente.

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SOBRE A AUTORA

Talita Azevedo é pesquisadora, antropológa, escritora e fundadora da consultoria oná. Atua como mentora de negócios na Associação Bras... saiba mais