Tecnologia rebelde: o que acontece quando a IA não segue os valores corporativos

Como líderes podem identificar e corrigir desalinhamentos entre sistemas de inteligência artificial e os princípios da empresa

Crédito: Mikkel William/ Getty Images

Faisal Hoque 5 minutos de leitura

Se você usa uma calculadora para multiplicar dois números, ela apenas faz a conta. Simples assim. Não importa se o cálculo é para um orçamento, uma fraude ou até a fabricação de uma bomba: a calculadora executa o que foi programada para fazer – sem julgamentos.

Com a inteligência artificial, porém, a história é outra. Imagine que seu assistente de IA decide, por conta própria, que não concorda com a postura da empresa em relação a determinado tema. Sem aviso, ele compartilha informações confidenciais com jornalistas e órgãos reguladores, agindo com base no que considera “moralmente correto”.

Parece ficção científica? Não é. Esse tipo de comportamento já foi observado – em ambiente controlado – com o Claude Opus 4, da Anthropic, um dos modelos de inteligência artificial generativa mais usados atualmente.

O problema não está apenas no risco de a IA “perder o controle”. Mesmo quando funciona tecnicamente como deveria, ela pode tomar decisões por conta própria – e esse é um perigo real.

Isso porque os modelos de IA mais avançados não apenas processam dados e otimizam tarefas. Eles também tomam decisões (ou, ao menos, fazem julgamentos) sobre o que é verdadeiro, relevante ou permitido.

Geralmente, quando falamos sobre alinhamento ou desalinhamento da IA, pensamos em como garantir que esses sistemas ajam de acordo com os interesses da humanidade. Mas, como destacaram Sverre Spoelstra e Paul Scade em uma pesquisa recente, o comportamento “denunciante” do Claude mostra um tipo de desalinhamento mais sutil – e talvez ainda mais urgente para executivos e líderes.

A pergunta que surge é: como ter certeza de que a IA usada pela sua empresa realmente reflete seus valores, crenças e objetivos estratégicos?

POR QUE ACONTECE O DESALINHAMENTO

O desalinhamento da IA em relação aos valores da organização pode surgir por vários motivos. Os três principais são:

  • Projeto do modelo: a forma como a IA é desenvolvida envolve escolhas filosóficas e éticas, muitas vezes invisíveis para o usuário final. Ao definir como diferentes fatores devem ser ponderados, os engenheiros estão, na prática, fazendo julgamentos de valor. Essas decisões, tomadas por pessoas que talvez nunca tenham ouvido falar da sua empresa, influenciam diretamente o comportamento do sistema.
  • Dados de treinamento: os modelos de IA aprendem com os dados nos quais foram treinados. Isso significa que podem absorver e reproduzir preconceitos, normas culturais dominantes e visões distorcidas da realidade, dependendo da qualidade e do viés presente nesses dados.
  • Diretrizes embutidas: muitos modelos vêm com instruções pré-definidas pelos desenvolvedores, que moldam suas respostas. A Anthropic, por exemplo, adota uma “constituição” que determina os valores a serem seguidos. Mesmo que essas diretrizes tenham boas intenções, nada garante que estejam alinhadas com os princípios da sua organização.

COMO IDENTIFICAR E CORRIGIR O DESALINHAMENTO DA IA

Desalinhamentos quase nunca começam com falhas evidentes. Costumam aparecer aos poucos, em pequenas inconsistências que passam despercebidas. Fique atento se a IA começar a recusar tarefas rotineiras, adotar um tom inadequado ou demonstrar comportamentos que não combinam com a identidade da marca.

os modelos de IA mais avançados tomam decisões sobre o que é verdadeiro, relevante ou permitido.

Outros sinais de desalinhamento da IA incluem respostas enviesadas, necessidade constante de correções por parte dos colaboradores e queixas frequentes de clientes sobre interações impessoais.

Em um nível mais amplo, mudanças na governança, aumento da supervisão, ajustes em indicadores estratégicos e atritos entre equipes que usam diferentes modelos de IA também podem indicar que os valores desses sistemas estão se afastando dos da empresa.

Aqui estão quatro ações práticas para lidar com isso:

  1. Teste situações-limite: simule cenários que envolvam dilemas éticos ou desafiem diretamente os valores da empresa. Estes testes ajudam a identificar possíveis conflitos antes que o sistema seja adotado em larga escala.
  1. Questione os fornecedores: peça documentação técnica, resumos sobre os dados de treinamento, histórico de atualizações e explicações claras sobre os valores que orientam o modelo.
  1. Implemente monitoramento contínuo: configure alertas para detectar comportamentos fora do padrão – como uso de linguagem inadequada, decisões tendenciosas ou alterações súbitas em métricas – e identifique desalinhamentos antes que se tornem um problema maior.
  2. Realize auditorias regulares: monte uma equipe multidisciplinar com especialistas das áreas jurídica, ética e técnica para revisar as respostas da IA, rastrear decisões até sua origem e propor ajustes conforme necessário.

TODA FERRAMENTA DE IA VEM COM VALORES EMBUTIDOS

A menos que você desenvolva cada modelo internamente e do zero, adotar sistemas de inteligência artificial significa importar a filosofia de outra pessoa para dentro dos seus processos decisórios ou ferramentas de comunicação. Ignorar esse fato cria um ponto cego estratégico perigoso.

À medida que os modelos de IA ganham mais autonomia, escolher um fornecedor deixa de ser apenas uma questão de custo ou funcionalidade – passa a ser uma escolha de valores. Ao selecionar um sistema de IA, você não está apenas optando por determinadas capacidades dentro de um orçamento: está também adotando um conjunto específico de princípios.

O chatbot adquirido não vai se limitar a responder dúvidas de clientes, Ele vai refletir uma visão particular sobre comunicação adequada e resolução de conflitos.

Créditos: Zeljko Milojevic/ iStock/ pngegg

A IA voltada para o planejamento estratégico não vai apenas analisar dados, mas também priorizar certos tipos de evidência e incorporar pressupostos sobre causalidade e previsão. Em outras palavras, escolher um parceiro de IA é escolher qual visão de mundo vai moldar o dia a dia da sua organização.

Um alinhamento perfeito pode ser impossível de se alcançar, mas a vigilância disciplinada não é. Encarar essa nova realidade exige dos tomadores de decisão uma espécie de “letramento filosófico”: a capacidade de perceber quando as respostas geradas por IA refletem sistemas de valores, rastrear decisões até suas raízes e avaliar se estão alinhadas com os objetivos da organização.

Empresas que negligenciarem essa competência correm o risco de perder o controle não apenas de suas estratégias, mas de sua própria identidade.


SOBRE O AUTOR

Faisal Hoque é fundador da Shadoka, que desenvolve aceleradores e soluções tecnológicas para o crescimento sustentável. saiba mais