Voltando às origens: como redesenhar a internet para promover o bem coletivo
E se a próxima geração de redes sociais permitisse encontros com caras, vozes e afeto, sem explorar dados nem promover conflitos?

Em poucas décadas, a internet deixou de ser uma rede de computadores para se fundir aos nossos corpos, via smartphones, e às nossas mentes, por meio de algoritmos que conhecem nossas preferências mais íntimas – às vezes melhor do que os próprios amigos. Criou-se, assim, um segundo mundo social, paralelo ao físico.
Mas, apesar de sua onipresença no cotidiano, poucos descreveriam a internet como um lugar de amor, compaixão ou cooperação. Diversas pesquisas apontam que as redes sociais têm promovido alienação e desconexão. Em parte, isso ocorre porque os algoritmos das plataformas tendem a recompensar comportamentos como a chamada "trolagem", o cyberbullying e o discurso de ódio.
A internet estaria, então, condenada a ser lembrada como uma profetisa do desespero? Ou ainda há chance redesenhar a internet para transformá-la em ferramenta de desenvolvimento coletivo?
O lucro das redes sociais depende do investimento emocional e criativo de seus usuários. Criar vídeos para o TikTok ou escrever um comentário elaborado no Reddit exige tempo e energia. Até mesmo o consumo passivo – o famoso "scroll infinito" – cobra seu preço, ao prender o usuário em ciclos de dopamina e interações tóxicas.
Esse esgotamento digital não é um acidente. Ele faz parte de um modelo em que amor e cura são incompatíveis com rentabilidade.
O CUIDADO ESCONDIDO À VISTA DE TODOS
No livro "Envisioning Real Utopias" (Prevendo utopias reais, em tradução livre), de 2009, o sociólogo Erik Olin Wright refletiu sobre sistemas que priorizam cooperação, cuidado e igualdade. Embora seu foco estivesse em organizações off-line, como cooperativas de trabalhadores, ele apontou uma exceção notável na internet: a Wikipédia.

Wright via no projeto colaborativo um exemplo vivo do princípio "de cada um segundo sua capacidade, a cada um segundo sua necessidade", ideal utópico popularizado por Karl Marx.
Sem fins lucrativos, administrada por voluntários e sem métricas de vaidade – curtidas, comentários, emojis –, a Wikipédia é uma mídia profundamente social: construída por muitos, acessada por todos, mantida por poucos. Os ganhos são coletivos. Ninguém perde.
CONSTRUINDO UM MUNDO DIGITAL ALTERNATIVO
A Wikipédia mostra que ainda há espaço para uma internet baseada em cuidado, generosidade e cooperação. E não está sozinha. Há iniciativas voltadas para a construção de aplicativos e plataformas que priorizam o bem-estar coletivo e a proteção de dados, como o aplicativos de mensagens Signal, gratuito e de código aberto.
Mas como promover uma internet mais justa e acolhedora?
No livro "Viral Justice: How We Grow the World We Want" (Justiça vira: como cultivar o mundo que queremos, em tradução livre), a socióloga Ruha Benjamin relata a greve cultural organizada por criadores negros no TikTok, em 2021.
O esgotamento digital faz parte de um modelo em que amor e cura são incompatíveis com rentabilidade.
Muitos dos vídeos virais que circulavam na plataforma eram de autoria de artistas negros, mas seus perfis eram prejudicados por algoritmos que favoreciam influenciadores brancos.
O protesto, conhecido como #BlackTikTokStrike, forçou um pedido formal de desculpas por parte do TikTok, além de compromissos com maior visibilidade e remuneração justa. A greve mostrou que, nas redes sociais, todo engajamento é trabalho – e trabalhadores podem se organizar.
Enquanto isso, coletivos como a cooperativa tecnológica Sulá Batsú, na Costa Rica, vêm repensando a própria arquitetura da internet. A proposta: romper com a lógica da exploração e do ódio.

“Queremos construir um mundo digital onde mulheres e pessoas com diferentes identidades de gênero e sexualidade possam exercer autonomia, fortalecer movimentos e transformar relações de poder”, afirmam.
Em Los Angeles, a empresa Chani Inc. segue caminho semelhante. Sem financiamento de capitalistas de risco, criou um aplicativo que mistura astrologia e práticas de bem-estar, sem se render à lógica da compulsão: sem venda de dados, sem seções de comentários, sem engajamento forçado. A proposta é simples – ajudar.
E SE A WIKIPÉDIA FOSSE A REGRA PARA REDESENHAR A INTERNET?
Grande parte do problema da cultura digital está no apagamento da humanidade do outro. Fóruns e comentários oferecem liberdade de expressão, mas raramente expõem quem está por trás das palavras. A interação perde profundidade. O anonimato encoraja a desumanização.
No ensaio "Attention and Alienation", a autora – que compartilha ter desejado “ver os pais pelo telefone” quando tinha oito anos, em um período no qual eles estavam trabalhando em outro país – defende que interações verdadeiramente humanas, com caras, vozes e escuta, fariam da internet um espaço mais empático.
A Wikipédia mostra que ainda há espaço para uma internet baseada em cuidado, generosidade e cooperação.
Durante a pandemia de 2020, aulas online via videoconferência permitiram experiências desse tipo: uma pessoa fala, outras escutam. Não é perfeito, mas é mais humano. Plataformas como o ClubHouse tentaram capturar essa ideia, criando fóruns de discussão por voz. Porém, enfrentaram críticas por práticas abusivas de privacidade.
E se a próxima geração de redes sociais fosse construída sobre essa base? Se permitisse encontros com caras, vozes e afeto, sem explorar dados nem promover conflitos?
Sobrancelhas arqueadas, sorrisos, caretas: essas expressões nos distinguem das máquinas – até mesmo dos sistemas de inteligência artificial mais avançados, como o ChatGPT.
Afinal, será que algo que você não consegue dizer olhando nos olhos de outra pessoa vale mesmo a pena ser dito?