Mães se sentem culpadas, mas quem disse que é possível dar conta de tudo?
O mais importante é entender que o problema não está em você – é estrutural

A expressão “culpa materna” é tão comum que muitas vezes nem paramos para pensar no que ela realmente quer dizer – ou por que parece tão difícil de evitar.
É aquela sensação persistente e incômoda que muitas mães conhecem bem: a de que nunca estão fazendo o bastante. De que não são presentes o suficiente, nem amorosas, pacientes ou criativas o suficiente. É a impressão constante de estar falhando – mesmo quando estão dando tudo de si.
Mas e se essa culpa não tiver a ver só com decisões individuais? E se ela não for sinal de um falha pessoal, mas o reflexo de algo muito maior – como pressões culturais, expectativas históricas e falhas estruturais que moldam o que esperamos das mães hoje?
Este artigo propõe um novo olhar para a culpa materna: não como um problema das mulheres, mas como um sintoma de uma sociedade que exige demais, oferece pouco e ainda faz as mães se sentirem mal por não conseguirem dar conta de tudo.
UMA CULPA CONSTANTE
Do ponto de vista psicológico, a culpa é uma emoção moral – ela surge quando achamos que fizemos algo de errado e queremos corrigir. Mas, no caso da culpa materna, raramente há um erro específico. É mais uma sensação vaga, constante e pesada de que algo está sempre faltando.
Por ser tão difusa e persistente, talvez essa culpa não seja só um sentimento individual, mas um padrão coletivo – quase como parte do “clima” cultural em que vivemos.
O teórico da cultura Raymond Williams chamava isso de “estrutura de sentimento”: algo que não está escrito em lugar nenhum, mas que influencia a maneira como nos sentimos e nos comportamos, de forma sutil e contínua.
Nesse sentido, a culpa materna não é algo que as mulheres simplesmente sentem – é algo que aprendem a sentir.
DE ONDE VEM TANTA COBRANÇA?
Para entender de onde vem essa sensação de culpa, é preciso olhar para como a imagem da “boa mãe” foi construída na cultura ocidental.
Depois da Segunda Guerra Mundial, o modelo idealizado de mãe era o da dona de casa em tempo integral: casada com um provedor e totalmente dedicada aos filhos. Seu trabalho era invisível, mas visto como essencial – e seu valor vinha do sacrifício pessoal.
Nos anos 1990 e 2000, esse ideal evoluiu para o que a socióloga Sharon Hays chamou de “maternidade intensiva”: mães que deveriam estar 100% disponíveis emocionalmente, cuidar de cada detalhe do desenvolvimento dos filhos, seguir à risca os conselhos dos especialistas e abrir mão das próprias necessidades. Mesmo com mais mulheres no mercado de trabalho, esse novo modelo continuava exigindo uma dedicação total.

O resultado? Muitas mães se viram tentando equilibrar exigências conflitantes: ser altruísta e bem-sucedida, estar sempre presente e, ao mesmo tempo, ser independente. A culpa, nesse contexto, não indica falha – é apenas a resposta emocional de quem está sendo cobrada a fazer o impossível.
Quando mães se sentem exaustas, a resposta que escutam é: “tente mais. Seja grata. Encontre equilíbrio”. Isso reflete uma lógica cultural que culpa o indivíduo por problemas estruturais – e diz que tudo se resolve com autocuidado, não com mudanças coletivas.
É nesse contexto que a culpa materna se instala. Ela transforma problemas sociais em responsabilidades individuais. Faz com que as mulheres se culpem em silêncio, em vez de questionar o sistema que as sobrecarrega.
A CULPA TEM GÊNERO
Vale lembrar: a culpa não é distribuída igualmente. Pais – principalmente em casais heterossexuais – raramente são criticados por trabalharem demais ou por tirarem um tempo para si. Quando participam da criação dos filhos, muitas vezes são elogiados por “ajudar”.
a culpa materna transforma problemas sociais em responsabilidades individuais.
Já as mães são constantemente cobradas para viver em função das crianças, cuidar de todos os aspectos da vida delas – inclusive das emoções. A socióloga Arlie Hochschild chama isso de “trabalho emocional” – o esforço invisível de cuidar do bem-estar dos outros.
Dentro das famílias, esse trabalho costuma recair sobre as mulheres. E quando elas não dão conta, sentem culpa – não só pelo que fizeram ou deixaram de fazer, mas pela falta de paciência, pela ausência ou até por não se sentirem totalmente felizes nessa função.
O QUE FAZER COM A CULPA MATERNA?
Em vez de dizer para as mães simplesmente “superarem” a culpa, talvez devêssemos nos perguntar: para que ela serve? Quem ganha com isso?
A culpa materna não é só um sentimento – é um mecanismo de controle. Ela mantém as mulheres tentando alcançar padrões impossíveis, caladas sobre suas necessidades e presas a uma lógica que só olha para o esforço individual. A culpa impede que questionem um sistema que claramente não funciona.

Não existe solução mágica. Mas dar nome ao que sentimos já é um bom começo. Quando a culpa surgir, vale parar e refletir:
- De onde vem essa ideia de que eu “deveria” fazer isso?
- De quem são essas expectativas que estou tentando atender?
- O que eu precisaria, de verdade – como pessoa e como parte da sociedade –, para me sentir menos dividida?
Essas perguntas não eliminam a culpa, mas ajudam a diminuir seu poder. E, aos poucos, mudam a narrativa – de uma história de fracasso pessoal para uma jornada de consciência coletiva e cuidado mútuo.