Além do ego começa a verdadeira liderança

A liderança que realmente transforma é aquela que tem coragem de bancar conversas difíceis e decisões impopulares mas com respeito, verdade e presença

homem com binóculo navegando em barco de papel
Crédito: tiero/ Getty Images

Cadu Lemos 4 minutos de leitura

Vivemos mergulhados numa verdadeira cacofonia de discursos sobre autoconhecimento, liderança consciente, desenvolvimento humano, práticas contemplativas, cultura organizacional saudável e tantos outros nomes que parecem sofisticar aquilo que, no fundo, é simples demais para ser reduzido a metodologias: a necessidade de relações mais verdadeiras no ambiente de trabalho, com menos medo, menos vaidade e mais escuta real.

É inegável o valor de ferramentas como mindfulness, comunicação não violenta, escuta ativa ou práticas de respiração e atenção plena. Mas é preciso reconhecer que, sem uma mudança concreta na forma como nos relacionamos, elas se tornam apenas ornamentos de uma estrutura que continua operando no velho paradigma – o do controle disfarçado de cuidado, da hierarquia encenada como colaboração, do ego como se fosse consciência.

Alan Watts, filósofo britânico que fez pontes importantes entre o conhecimento oriental e o ocidental, já disse: seguimos confundindo o dedo com a Lua. Encantados com os instrumentos, esquecemos o essencial.

O ego se reinventa com facilidade. Quando ameaçado, ele se apropria até das linguagens que supostamente o dissolveriam. É assim que o materialismo espiritual se instala: passamos a acreditar que quanto mais conscientes nos tornamos, mais “evoluídos” estamos.

Assim, acabamos criando uma nova camada de separação, sutil, mas ainda baseada na comparação, na ideia de que existe um patamar superior a ser alcançado por alguns poucos despertos – quando o verdadeiro despertar não nos separa de ninguém, mas nos devolve à humildade de pertencer ao todo.

Observo isso acontecer também nas organizações e seus “jogos de cena”. Líderes que adotam o vocabulário da escuta e da empatia, mas mantêm relações baseadas em medo, competitividade e controle. Empresas que falam em segurança psicológica, mas punem o erro, silenciam o conflito, maquiam a verdade.

Não há flow nesse ambiente. O flow não é um estado que se comanda ou se estimula com técnicas – ele emerge. E só emerge onde há liberdade para ser inteiro, sem precisar se proteger o tempo todo.

Tenho chamado de "cultura de flow" essas estruturas organizacionais que, pouco a pouco, estão saindo da lógica de comando e controle e permitindo que algo mais vivo, mais horizontal e mais real aconteça nas relações de trabalho.

Não é uma cultura onde tudo é leve e harmônico o tempo todo. Ao contrário. É um ambiente onde os conflitos não são evitados, mas vivenciados com presença. Neste lugar, os ruídos não são negados, mas acolhidos como parte do processo e o resultado é consequência, não obsessão.

Créditos: vackground.com/ Daniela Torres/ Unsplash

A base disso tudo é a segurança psicológica. Esta condição não se cria com discursos, mas com posturas. É preciso coragem para sustentar um ambiente onde o medo não tenha vez. Nem o medo de errar, nem o de discordar, nem o de mostrar fragilidade, porque só existe confiança verdadeira quando ninguém precisa fingir.

Nesse contexto, liderança não é uma figura, não é uma pessoa, nem um cargo – é uma ideia. Uma ideia viva que circula entre as relações, que se manifesta nas atitudes, nas decisões silenciosas, nas palavras ditas no momento certo, nos silêncios dão espaço.

A liderança não acontece porque alguém ocupa um título, mas porque alguém sustenta a clareza e a transparência quando tudo ao redor se fragmenta. Liderar não é ocupar espaço, é sustentar a presença. Isso não tem a ver com controle, e sim com inteireza.

UMA LIDERANÇA CONSCIENTE ENFRENTA A PRÓPRIA INSEGURANÇA

A liderança em flow, além do ego, não busca reconhecimento, não precisa ter sempre a última palavra, não se apega ao protagonismo. Ela opera como suporte invisível, como chão firme que permite que outros caminhem com mais segurança.

Não se trata de uma liderança “boazinha”, que evita conflitos para manter uma aparência de harmonia. A liderança que realmente transforma é aquela que tem coragem de olhar para o que incomoda, de nomear o que está oculto, de bancar conversas difíceis e decisões impopulares – mas sempre com respeito, verdade e presença.

É importante lembrar que passamos mais de 70% da nossa vida adulta trabalhando. Não pode ser um espaço de sobrevivência emocional, onde precisamos colocar máscaras para ser aceitos, esconder emoções para parecer profissionais ou seguir regras não ditas para não parecer “difíceis”.

liderança não é uma figura, não é uma pessoa, nem um cargo – é uma ideia.

O trabalho precisa ser um lugar onde dá para respirar, onde dá vontade de estar. Onde o tempo vivido ali não seja um desperdício da nossa vitalidade.

A cultura de flow nasce quando os líderes param de fingir que sabem, param de se esconder atrás de cargos e frameworks e começam a encarar o que realmente estão evitando: a própria insegurança, o medo de não controlar, a impossibilidade de sustentar o vazio sem preencher com mais uma reunião.

Liderança não é um crachá, uma sala de canto com janelas e uma vista incrível, nem um discurso. Não é nem mesmo uma pessoa. Liderança é o que emerge quando o ego sai do caminho.

Chegamos ao ponto em que “liderança consciente” virou mais um produto. Vendido em pacotes, treinado em três módulos, servido com certificado. Mas consciência, de verdade, não se ensina.

Se sua liderança ainda agrada a todos, talvez você não esteja liderando. Talvez você esteja apenas se protegendo de ser real.

Pronto para perder o personagem?


SOBRE O AUTOR

Cadu Lemos é idealizador do Projeto Flow. saiba mais