O meteoro, o bufão e meu primeiro carro chinês

De fábrica do mundo, símbolo de bugigangas baratas e mão de obra explorada, a China passou a ser referência global em quase todas as frentes

Trump com a expressão Make America Great Again escrita ao lado de sua boca
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Fred Gelli 6 minutos de leitura

Se tem uma coisa que aprendi, tendo a natureza como principal fonte de inspiração há tanto tempo, é que, na jornada evolutiva, não existe jogo ganho para ninguém.

Você pode ter a força e o tamanho de um Tiranossauro rex, um histórico de dominação absoluta do planeta por mais de 150 milhões de anos mas, da noite para o dia, tudo pode mudar. Ser extinto, perder relevância, na verdade, é o destino inexorável de tudo que existe no universo.

A entropia, o colapso, abrem espaço para o novo. Nem as estrelas escapam. Às vezes, o fim é puro acaso – como o meteoro do tamanho do monte Everest que caiu no Golfo do México, não dando chances aos dinossauros. Mas, muitas vezes, é mais caprichoso e conta com a ajuda ativa do próprio candidato à extinção.

A arrogância, a miopia ou o sucesso desmedido podem ser causas diretas do declínio de pessoas, empresas ou impérios. A história está cheia de exemplos. E, mesmo assim, seguimos tropeçando nas mesmas pedras.

Trabalhando com branding e design há 35 anos, já vimos muitas marcas enfrentando o desafio de renovar sua relevância. O grau de transformação necessário varia conforme o tamanho do gap e o tempo que essas organizações levam para reagir.

Costumo dizer que não existe âncora evolutiva mais pesada do que o próprio sucesso. Marcas que brilharam por muito tempo tendem a resistir às mudanças necessárias para seguir vivas – e, às vezes, é tarde demais.

O meteoro das startups com pouco a perder é impiedoso. Outras se perdem tentando imitar os concorrentes, abandonam sua natureza e não vão longe. Agora, poucas vezes vi marcas suicidas. Aquelas que, de uma hora para outra, passam a negar tudo o que construíram ao longo de décadas: valores, propósitos, visões. E o resultado?

Basta acompanhar o noticiário global para entender o que está acontecendo com o império norte-americano. Como é possível que uma das marcas mais poderosas do planeta – a marca USA – esteja sendo tão maltratada? Tudo começa pelo CEO. Donald Trump é a caricatura perfeita para encarnar a decadência do país.

O nível de bizarrice e irracionalidade não parece ter fim, assim como a apropriação política e ideológica da máquina pública em nome dos caprichos tresloucados (e cruéis) do homem laranja, deixando até alguns de seus maiores apoiadores de cabelo em pé.

A arrogância, a miopia ou o sucesso desmedido podem ser causas diretas do declínio de pessoas, empresas ou impérios.

É verdade que muitas de suas ideias e valores sempre fizeram parte do DNA de uma parcela relevante da sociedade norte-americana. Mas agora, como em vários lugares do mundo, a caixa de Pandora foi aberta – e os monstros estão soltos.

O sonho americano – das oportunidades para todos, da mistura, da liberdade, da democracia como farol do mundo – virou um pesadelo, principalmente para os milhões de imigrantes que ajudaram a construir o país. E quanto à democracia? Acho que está na hora de reavaliarmos seu verdadeiro significado.

O jornalista Bruno Torturra diz que hoje ela virou o “nome de guerra do capitalismo”. Os multibilionários já não precisam disfarçar o tamanho de sua influência na política e nas decisões do Estado. O que é melhor para poucos se sobrepõe ao que seria melhor para todos.

E o mais impressionante: onde está a oposição? O Partido Democrata e boa parte da sociedade parecem paralisados diante do colapso de tudo que ainda sustentava a confiança global no país – o que, segundo pesquisas recentes, já vem corroendo a imagem da marca USA mundo afora.

Tarifaço americano provocou a reação da China, que fixou tarifa de importação de 34%
Crédito: BanksPhotos/ Getty Images

Mas a evolução é implacável. E não deixa espaço vazio. Quando uma espécie entra em decadência, outras avançam. E é exatamente essa a posição da China no atual ecossistema planetário. Ela vem trabalhando duro, com a disciplina e a visão estratégica que uma cultura de cinco mil anos oferece.

Nem as lideranças chinesas mais otimistas podiam imaginar que o adversário facilitaria tanto, fazendo tantos gols contra. O que não diminui a eficiência dos movimentos chineses em todas as áreas do conhecimento humano.

Liderança absoluta em número de doutorandos. Vanguarda tecnológica. Transferência de renda sem precedentes, com a formação de uma classe média de 800 milhões de pessoas. Talvez, o mais surpreendente: começou a ocupar outro espaço, muito além da geopolítica ou da economia – um lugar na cabeça e até no coração das pessoas.

Na minha cabeça, com certeza, ela já ocupa. Primeiro, por ser a única nação com apetite e capacidade de resistir às bravatas do bufão. Depois, porque venho sentindo na pele os efeitos concretos dos investimentos em branding que a China vem fazendo. E marca, afinal, é a coerência entre storytelling e store doing. E eles vêm entregando.

O sonho americano virou um pesadelo, principalmente para os milhões de imigrantes que ajudaram a construir o país.

De fábrica do mundo, símbolo de bugigangas baratas e mão de obra explorada, a China passou a ser referência global em quase todas as frentes: das IAs à sustentabilidade (sim, é hoje a única nação que leva o Acordo de Paris a sério e investe pesado em mudanças climáticas); da exploração espacial às maiores inovações em medicina.

Mas é no storytelling que vêm as maiores surpresas. A assinatura “Welcome to the real world”, usada por centenas de influenciadores chineses no TikTok, virou um tapa na cara – especialmente dos norte-americanos – sobre a decadência da marca USA.

Um dos vídeos mais virais mostra um chinês falando inglês perfeito, num cenário Pinterest, desafiando os EUA a fazerem uma revolução interna para conter a decadência.

Ele lembra que, durante décadas, a relação com a China gerou riqueza para os dois lados – mas, enquanto por lá o dinheiro foi investido em educação, saúde, mobilidade e cidades modernas, nos EUA virou iates, jatinhos e concentração absurda de riqueza.

Crédito: Istock

Chama os norte-americanos de viciados em consumo. E cada vez mais pobres. E o pior: parece que a carapuça serviu.

Claro que a China tem problemas, e muitos nem conseguimos acessar, por conta da censura e da falta de liberdade. Mas, quando estudantes são presos dentro de universidades dos EUA por protestarem contra massacres de civis patrocinados por um aspirante a ditador, de que liberdade estamos falando?

Ah, mas lá não se pode usar WhatsApp ou assistir ao YouTube. Liberdade, então, é poder entregar seus dados às big techs norte-americanas que moldam o curso da história?

Nem as lideranças chinesas mais otimistas podiam imaginar que o adversário facilitaria tanto, fazendo tantos gols contra.

Welcome to the real world.” É esse o convite que está ecoando pelo mundo. E que, além de revelar uma China surpreendente – bem distante dos clichês –, também escancara o contraste com a propaganda tóxica e as fake news ocidentais.

Agora, os chineses parecem mesmo estar dando mais espaço para que o próprio povo mostre o país por dentro. Centenas de vídeos exibem os novos sentidos do “Made in China”: cidades incríveis (e cafonas), restaurantes estrelados, comunidades agrícolas tradicionais, tecnologias, inovação – tudo no scroll do TikTok.

Foi nesse contexto que, querendo comprar um carro novo – um que me levasse o mais perto possível da natureza, por trilhas e estradas alternativas –, acabei, para minha própria surpresa, escolhendo um carro chinês. A decisão não foi só porque o carro é incrível, ou porque custava quase a metade do Jeep que eu estava de olho.

Foi exatamente porque não era norte-americano. 

Era chinês.


SOBRE O AUTOR

Fred Gelli é co-fundador e CEO da Tátil Design, consultoria de branding, design e inovação que desenha estratégias e experiências de m... saiba mais