Beleza inatingível: o retrocesso da moda com as modelos geradas por IA
Anúncio na "Vogue" dos EUA traz uma modelo criada por inteligência artificial. O que isso significa para o futuro da diversidade na indústria da moda?

Os já inalcançáveis padrões de beleza feminina estão prestes a se tornar ainda menos realistas. A nova estrela de um anúncio da marca Guess, publicado na última edição da revista "Vogue" nos EUA, é uma modelo gerada por IA – esguia, impecável e, como convém, identificada como "artificial" apenas em letras miúdas no rodapé da página.
Com a chegada da inteligência artificial às páginas de publicidade da chamada "bíblia da moda", parece ser apenas uma questão de tempo até que modelos igualmente irreais comecem a aparecer nos editoriais – quem sabe até na capa.
A responsável pela criação da musa digital da Guess é a agência de marketing com foco em IA Seraphinne Vallora. Segundo a BBC, o processo de geração de uma modelo como essa envolve cinco especialistas em IA, leva cerca de um mês e custa algo na casa dos “seis dígitos” (ou seja, dezenas de milhares de dólares).
O resultado? Uma Afrodite moderna, com cabelos dourados, corpo escultural e vestida com um longo listrado. Uma mistura artificial de Kate Upton com Margot Robbie. Mas o mais revelador talvez seja notar quem ela não se parece e por quê.

Apesar do custo elevado, comparável a um ensaio tradicional com fotógrafos, maquiadores e estilistas reais, a aposta em modelos digitais ameaça desmanchar parte dos avanços que a moda alcançou em termos de diversidade nos últimos 15 anos.
DA DIVERSIDADE AO OZEMPIC
A década de 2010 marcou um avanço significativo na representatividade racial e corporal nas passarelas e editoriais de moda. Em 2017, um relatório do The Fashion Spot indicou que 27,9% das modelos na Semana de Moda de Nova York daquele ano eram de minorias étnicas. Em 2020, a "Vogue" estampou sua primeira modelo plus size na capa, Ashley Graham, seguida por Lizzo no mesmo ano.
Mas esse movimento não durou. A revista não trouxe mais nenhuma modelo de manequim maior nos cinco anos seguintes. Em dezembro de 2023, a "Vogue Business" declarou que o ano havia sido marcado por um retrocesso na diversidade.
Culpou-se a crise econômica pós-pandemia, a reação negativa às políticas de diversidade, equidade e inclusão (DEI, na sigla em inglês) e a escolha de homens brancos como diretores criativos de grifes como Alexander McQueen e Gucci.


Na mesma temporada, na Semana de Moda de Nova York, apenas 15% dos estilistas eram negros e as passarelas voltaram a ser dominadas pelo velho estereótipo da modelo branca e magérrima.
A explosão do uso de medicamentos como Ozempic também ajudou a silenciar o discurso sobre positividade corporal, substituindo-o por uma obsessão com emagrecimentos rápidos e drásticos.
Na temporada de primavera de 2024, de um total de 8.703 looks apresentados, apenas 0,3% foram desfilados por modelos plus size – uma queda em relação aos já minguados 0,8% da estação anterior. Esse recuo coincide com a proliferação de ferramentas de geração de imagens por IA cada vez mais sofisticadas.
ENTRE MODELOS DIGITAIS E REALIDADE ALTERADA
Embora a primeira supermodelo digital – a negra Shudu Gram – tenha sido criada em 2017, foi só recentemente que a indústria abraçou de vez os avatares artificiais. No ano passado, a fast fashion Mango lançou uma campanha exclusivamente com modelos geradas por IA. Já a H&M começou a desenvolver “gêmeas digitais” de suas modelos, como Mathilda Gvarliani.

Defensores da IA afirmam que a tecnologia pode ampliar a diversidade na moda, permitindo a criação de modelos de diferentes perfis e ajudando consumi- dores a tomar decisões mais alinhadas – o que, segundo eles, também reduziria o desperdício com devoluções. Mas a realidade parece diferente.
No caso do anúncio da Guess, a Seraphinne Vallora criou 10 modelos iniciais para o cofundador da marca, Paul Marciano, escolher. Ele selecionou uma morena e uma loira, que foram refinadas até o resultado final. A escolha pode parecer casual, mas o perfil da agência no Instagram mostra um portfólio repetitivo de musas esguias, brancas e etéreas.
Questionados pela BBC sobre a falta de diversidade, os fundadores culparam o público. “Publicamos imagens de mulheres com diferentes tons de pele, mas as pessoas não reagem. Não ganham curtidas”, disse a cofundadora Valentina Gonzales.
A justificativa levanta dúvidas. A agência parece mais disposta a sugerir que seu público seja discretamente racista do que admitir que sua tecnologia ainda falha em representar mulheres negras ou corpos diversos.
Quando o assunto são modelos plus size, a resposta é outra: “A tecnologia ainda não está avançada o suficiente para isso.”
Essa desculpa pode se tornar o novo padrão para empresas que desejam se aventurar no universo das modelos digitais: uma forma de evitar o debate sobre retrocessos na diversidade sem assumir qualquer responsabilidade. Agora, basta alegar que “adorariam” incluir modelos negras ou gordas, mas que “a IA ainda não permite”.
Com as políticas de DEI sendo cada vez mais atacadas, dificilmente alguém na cadeia de produção vai se levantar para contestar – a não ser, talvez, quando a cintura de uma modelo digital for mais estreita que a própria margem de manobra para questionamentos éticos.