Está na hora de planejar cidades que curam

“Epidemiologia arquitetônica”: um novo modelo de design urbano que integra saúde ao setor imobiliário

Está na hora de planejar cidades que curam
Créditos: ah_fotobox via Getty images

Liz York 7 minutos de leitura

E se prédios e bairros fossem planejados considerando os riscos à saúde e as mudanças climáticas, da mesma forma que empresas se baseiam em dados financeiros para tomar decisões? E se, em vez de agirem separadamente, saúde pública e mercado imobiliário trabalhassem juntos na construção de um futuro urbano mais justo e saudável?

Essa é a proposta ousada de “Architectural Epidemiology” (Epidemiologia Arquitetônica), novo livro que propõe uma mudança radical na forma como entendemos a relação entre espaço e saúde. Escrito pela arquiteta e especialista em saúde pública Adele Houghton e pelo epidemiologista Carlos Castillo-Salgado, o livro apresenta uma abordagem baseada no território que alinha investimentos imobiliários a objetivos de saúde pública – usando ferramentas da epidemiologia para orientar decisões de design que afetam tanto os edifícios quanto sua integração com a cidade ao redor.

Mais do que uma metáfora, a epidemiologia arquitetônica é uma metodologia prática.

DIAGNOSTICANDO LUGARES COMO PACIENTES

Assim como médicos analisam sintomas e fatores ambientais para diagnosticar pacientes, o modelo criado por Houghton e Castillo-Salgado ajuda urbanistas, incorporadores e gestores públicos a avaliar a “saúde” de um lugar.

O processo começa com a coleta de dados públicos sobre saúde e clima – como taxas de doenças respiratórias, exposição ao calor, custos de moradia, doenças crônicas e outros indicadores –, focando nas necessidades específicas da área em questão. Com base nessas informações, são definidas estratégias de desenvolvimento adaptadas à realidade local.

Quais são os maiores problemas de saúde e clima neste bairro? E como este projeto pode ajudar a solucioná-los?

Não se trata de um modelo padronizado. É uma abordagem ajustada ao contexto, com foco em equidade, que parte das perguntas: quais são os maiores problemas de saúde e clima neste bairro? E como este projeto pode ajudar a solucioná-los?

Dois estudos de caso apresentados no livro – um no South Bronx, em Nova York, e outro em Hackney, no leste de Londres – mostram como essa abordagem funciona na prática.

DE INFRAESTRUTURA TÓXICA À HABITAÇÃO COM FOCO NA SAÚDE

O South Bronx é uma das áreas com maior sobrecarga ambiental da cidade de Nova York. Os moradores enfrentam uma série de problemas de saúde – como obesidade, diabetes, doenças cardíacas e asma infantil – diretamente relacionados à poluição do ar, ao calor extremo e a condições precárias de moradia. A presença de estações de transferência de lixo, usinas de gás e o tráfego diário de mais de 750 caminhões a diesel deixaram marcas profundas na região.

Três projetos mostram como intervenções com foco na saúde funcionam na prática:

Arbor House, localizado no Bronx, em Nova York. Crédito: Bernstein Associates

O Arbor House, um conjunto habitacional popular com 124 unidades e certificação LEED Platinum, adotou uma abordagem voltada para o ambiente interno. Sem poder reduzir o tráfego e as emissões externas, a equipe optou por criar uma espécie de escudo: fachadas de alto desempenho, sistemas mecânicos de ventilação, materiais com baixo teor de compostos orgânicos voláteis e uma política de não fumar. Essas soluções foram pensadas com base em dados locais sobre problemas respiratórios e cardiovasculares.

O Eltona, outro projeto LEED Platinum do mesmo incorporador, seguiu a mesma linha, mas com o diferencial de estar localizado dentro da zona de renovação urbana Melrose Commons. Guiada por um plano desenvolvido pela própria comunidade, a área ganhou ruas mais seguras para pedestres e pequenos espaços verdes, que ajudam a reduzir ilhas de calor e focos de poluição. Esse tipo de planejamento integrado ampliou os benefícios para além do edifício.

Já o projeto The Peninsula representa uma transformação ainda mais ambiciosa: a conversão de um antigo centro de detenção juvenil em um polo comunitário de bem-estar. Quando finalizado (em 2026), o local contará com 740 unidades de habitação popular, centro de saúde, creche, supermercado, espaço para pequenas indústrias e um centro de capacitação profissional – tudo alinhado ao Hunts Point Vision Plan, um plano desenvolvido em parceria entre a prefeitura e a comunidade, para melhorar qualidade do ar, gerar oportunidades econômicas e garantir o acesso a áreas verdes, sem expulsar os moradores da região.

Essas transformações só foram possíveis graças à colaboração entre diversos atores. A incorporadora se comprometeu em construir moradias acessíveis e de renda média, além de espaços comerciais adequados à realidade local. A prefeitura revisou as leis de zoneamento e os códigos de construção. E os grupos comunitários atuaram de forma estratégica, documentando desigualdades, defendendo interesses dos moradores e evitando que o abandono histórico levasse à gentrificação.

DO ABANDONO INDUSTRIAL AO DESENVOLVIMENTO INCLUSIVO

Em Hackney, bairro no leste de Londres, a Gillett Square mostra como o planejamento urbano liderado pela comunidade pode promover resiliência sem causar deslocamento. A população local sofre com os altos níveis de poluição, com a insegurança viária e com estresse mental – especialmente crianças e idosos. A região é marcada por altos índices de pobreza, e as vulnerabilidades se agravam com a crise climática.

Projetos pensados para as necessidades da comunidade local promovem melhorias e desenvolvimento

O projeto começou nos anos 1980 com uma estratégia em três frentes: redução da criminalidade, criação de oportunidades econômicas para mulheres e grupos minorizados e manutenção dos preços diante do aumento do valor dos imóveis. Coordenada pela Hackney Co-operative Developments, uma organização comunitária, a iniciativa evoluiu ao longo de quatro décadas e se tornou referência em saúde urbana com foco na equidade.

Diferente de intervenções urbanas conduzidas de cima para baixo, a transformação de Gillett Square foi fruto de negociações constantes entre moradores, incorporadores e poder público. Um antigo estacionamento virou uma praça. Os prédios ao redor foram reformados para criar 30 espaços de coworking e 10 unidades comerciais para pequenos negócios e coletivos culturais. As fachadas originais foram preservadas, mantendo a identidade local. Durante as obras, os inquilinos foram realocados temporariamente – não expulsos –, o que é raro nesse tipo de projeto.

As melhorias não foram apenas estéticas. O edifício Bradbury Works recebeu isolamento térmico, janelas que abrem e ventilação natural para enfrentar as altas temperaturas e melhorar a qualidade do ar – além de já estar preparado para receber painéis solares.

Outros edifícios também passaram por transformações: uma antiga fábrica virou um clube de jazz; outra foi transformada em um prédio de uso misto com moradias populares e escritórios. Todos os projetos incorporaram elementos que promovem saúde, como luz natural, ventilação cruzada e eficiência energética.

Essas soluções foram pensadas com base nos problemas de saúde pública identificados na análise do bairro: poluição do ar, exposição ao calor, riscos à saúde mental e segurança dos pedestres.

O estudo da região apontou a necessidade de estratégias para reduzir a obesidade, transtornos mentais e acidentes de trânsito – desafios que podem ser solucionados não com grandes obras, mas com intervenções centradas nas pessoas.

A transformação da Gillett Square também só foi possível graças a políticas urbanas e o engajamento comunitário contínuo. A prefeitura aprovou mudanças importantes no zoneamento, permitindo transformar o estacionamento em praça, liberar o uso misto e instalar pequenos quiosques comerciais. A equipe de desenvolvimento priorizou os interesses da comunidade. E grupos locais – ativos há décadas – garantiram que os benefícios fossem compartilhados por todos.

Em uma região onde 75% da população é inquilina e onde crianças e idosos estão entre os mais pobres do Reino Unido, o risco de gentrificação é alto. A Gillett Square mostra que o design urbano pode fortalecer comunidades sem expulsá-las – e que intervenções urbanas com foco no bem-estar de longo prazo são mais eficazes do que soluções rápidas quando o objetivo é justiça urbana.

Esses exemplos mostram que a equidade em saúde pode ser o ponto de partida – e não apenas uma consequência – do desenvolvimento urbano. Ao alinhar investimentos a dados de saúde e clima, a epidemiologia arquitetônica oferece um caminho concreto para criar espaços que protegem e fortalecem as comunidades. Trata-se de uma abordagem que identifica as necessidades reais do território e orienta moradores, incorporadores e urbanistas em direção a soluções que gerem valor social e econômico para todos.


SOBRE O(A) AUTOR(A)

Liz York é arquiteta e defensora da saúde pública que palestra e escreve sobre o impacto do design na saúde, ecologia e equidade. Seu ... saiba mais