O valor de perguntar o que todo mundo acha que já sabe

Por que vale a pena abraçar nossa própria ignorância

O valor de perguntar o que todo mundo acha que já sabe
Créditos: Deagreez via Getty images

Andy Boenau 3 minutos de leitura

Às vezes, a melhor maneira de aprender sobre algo novo é justamente aceitar a própria ignorância. Veja o exemplo do urbanismo:

Quanto mais um planejador urbano entende de zoneamento, mais cauteloso ele tende a ser em relação a mudanças na lei. Quanto mais um engenheiro domina o desenho de interseções, mais receoso fica diante de propostas inovadoras. É da natureza humana transformar o que se aprende em “verdades” imutáveis: “sempre foi feito assim, então deve estar certo.”

O CASO DE “CIDADÃO KANE”

Usar a ignorância de forma consciente sempre fez parte da minha vida profissional. Por isso, adoro ouvir histórias de pessoas que também tiveram sucesso trilhando esse caminho. 

Sou fascinado por cinema. E não poderia deixar de citar “Cidadão Kane”, de 1941 – considerado por muitos o melhor filme de todos os tempos. As técnicas narrativas, a trilha sonora carregada de emoção e a complexidade dos personagens mudaram para sempre a forma como roteiristas e diretores passaram a encarar o cinema.

Este foi o filme de estreia de Orson Welles, que tinha apenas 24 anos quando começou a criar essa obra-prima. Aos 44, ele deu uma entrevista ao programa “BBC Monitor” que rendeu trechos memoráveis:

“Welles: Eu não queria dinheiro. Queria autonomia. E, depois de um ano de negociações, consegui. Meu amor pelo cinema só surgiu quando começamos a trabalhar.

BBC: E de onde veio tanta confiança?

Welles: Ignorância. Pura ignorância. Só quando você sabe algo sobre a profissão é que começa a agir com cautela.

BBC: Como essa ignorância se manifestava?

Welles: Eu achava que podia fazer com a câmera tudo o que o olho e a imaginação conseguem. Quando você começa de baixo na indústria do cinema, aprende logo tudo o que o cameraman evita tentar, com medo de ser criticado se falhar. No meu caso, eu tinha um cameraman que não se importava com isso – e eu nem sabia que certas coisas eram “impossíveis” de fazer. Então, tudo que eu sonhava, tentava filmar.

BBC: E você acabou conseguindo criar grandes avanços técnicos, certo?

Welles: Simplesmente por não saber que eram impossíveis. Ou melhor, teoricamente impossíveis.”

QUESTIONANDO O STATUS QUO

Não sou Orson Welles, mas sou ótimo em fazer perguntas aparentemente bobas sobre assuntos que não domino. Às vezes, isso me faz entender por que o status quo é como é. Outras, descubro que ele se apoia em pura pseudociência.

Perguntar “por quê?” e “e se...?” ainda é algo raro no planejamento urbano e na engenharia, áreas cheias de processos e estruturas rígidas. Há coisas que, supostamente, não devem ser questionadas. Mas aqui estão algumas perguntas que você poderia fazer aos tomadores de decisão da sua cidade:

Planejamento urbano:

  1. Tamanho mínimo de lote residencial: quais são os prós e contras de exigir uma metragem mínima para os terrenos?
  1. Escada única: se prédios com uma única escada foram praticamente proibidos nos EUA, por que arquitetos querem reverter essa regra?
  1. Construções recuadas: como a obrigatoriedade de prédios recuados afeta a caminhabilidade?
  1. Zoneamento de uso único: como proibir bairros de uso misto impacta a dependência do carro?
  1. Unidades por terreno: permitir várias unidades habitacionais em um mesmo lote traz benefícios econômicos?

Engenharia de transporte:

  1. Largura das faixas: existem estudos comparando a segurança das faixas de três metros com as de 3,6 metros?
  1. Tempo de semáforo: dar alguns segundos de vantagem aos pedestres antes do verde para carros traz benefícios?
  1. Diâmetro de rotatórias: existem casos que mostram que rotatórias menores podem ser mais seguras?
  1. Tipo de iluminação: existem estudos comparando a iluminação de padrão rodoviário com a iluminação voltada para pedestres?
  1. Limite de velocidade: quais são os impactos de projetar uma via para velocidades maiores do que as permitidas atualmente?

Pratique a “ignorância estratégica” nos seus projetos e ações de defesa do urbanismo. Faça perguntas com humildade, reconhecendo que não sabe tudo. O pior que pode acontecer é você aprender algo novo. O melhor é provocar discussões que resultem em melhorias nas políticas públicas ou na infraestrutura.


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