O ano em que ninguém morreu no trânsito de Helsinque
Enquanto muitas cidades no mundo lutam para tornar suas ruas mais seguras, a capital da Finlândia prova que mudanças radicais não só são possíveis – como realmente funcionam.

Entre julho de 2024 e julho de 2025, Helsinque, a capital da Finlândia, alcançou um feito notável: passou um ano inteiro sem registrar uma única morte no trânsito.
Para se ter uma ideia do impacto, basta comparar com Washington, D.C. que tem praticamente a mesma população, cerca de 700 mil habitantes. Em 2024, a capital norte-americana registrou 52 mortes no trânsito, incluindo uma criança de 12 anos atropelada enquanto cruzava a faixa de pedestres e um estudante de doutorado atingido por um carro enquanto andava de bicicleta.
No Brasil, o exemplo é Ribeirão Preto, no interior de São Paulo. A cidade de 700 mil pessoas teve mais de 100 mortes no trânsito em 2024.
Nos anos 1980, Helsinque estava longe de ter esse nível de segurança. Eram cerca de mil acidentes com feridos por ano, que resultaram entre 20 e 30 mortes. Mas, desde então, a cidade vem investindo de forma consistente para mudar esses números.
REDUÇÃO RADICAL DOS LIMITES DE VELOCIDADE
Hoje, a maior parte das ruas de Helsinque tem limite de 30 km/h. Nos anos 1970, o limite era de 50 km/h; no início dos anos 2000, caiu para 40 km/h. Desde então, a cidade vem ampliando as zonas de 30 km/h, especialmente perto de escolas. Atualmente, 60% das vias já adotam essa velocidade máxima.
Uma pessoa atropelada a 50 km/h tem um risco de morte até oito vezes maior do que se o impacto ocorrer a 30 km/h
Menos velocidade significa acidentes menos graves. Uma pessoa atropelada a 50 km/h tem um risco de morte até oito vezes maior do que se o impacto ocorrer a 30 km/h.
Além disso, Helsinque estreitou suas vias para desencorajar altas velocidades. “Só reduzir o limite não basta”, afirma Roni Utriainen, engenheiro de tráfego da Divisão de Meio Ambiente Urbano da cidade.
Hoje, a maioria das faixas tem pouco mais de 3,3 metros – algumas são ainda mais estreitas –, enquanto nos EUA costumam ter pelo menos 3,6 metros. Em certas ruas, árvores são plantadas bem próximas ao meio-fio para reforçar a sensação de espaço limitado. Um estudo da Johns Hopkins indica que reduzir a largura das faixas também ajudaria a diminuir acidentes nos Estados Unidos.
CÂMERAS AUTOMÁTICAS E MULTAS PROPORCIONAIS À RENDA
Helsinque conta com dezenas de câmeras que identificam motoristas acima da velocidade e emitem multas automaticamente. Em um ponto de fiscalização analisado em 2023, o número de veículos muito acima do limite caiu mais de 50% após a instalação.
Na Finlândia, as multas são calculadas de acordo com a renda do infrator
Na Finlândia, as multas são calculadas de acordo com a renda do infrator. Quem dirige mais de 20 km/h acima do limite paga proporcionalmente ao que ganha. Em 2023, o milionário Anders Wiklöf recebeu uma multa de € 121 mil (o equivalente a mais de R$ 765 mil) por exceder o limite de velocidade em 30 km/h. Nos EUA, alguns estados já testaram esse modelo, mas ele foi considerado impopular e complexo demais.
Cumprir a lei é fundamental para reduzir mortes. A cidade de São Francisco, por exemplo, também adotou a meta da iniciativa Visão Zero, buscando zerar as mortes no trânsito. Porém, desde 2014, quando a meta foi lançada, as mortes aumentaram mais de 50%. Um relatório recente apontou que a falta de fiscalização foi um dos principais motivos do fracasso.
MAIS OPÇÕES DE TRANSPORTE E INFRAESTRUTURA PARA BICICLETAS
Hoje, cerca de um terço da população de Helsinque usa transporte público para ir ao trabalho, enquanto 36% vão a pé e 11% usam bicicleta. Mas esses números poderiam ser bem diferentes: nos anos 1960, quando o volume de carros nas ruas crescia rapidamente, havia um plano inspirado no modelo norte-americano para demolir parte do centro, acabar com os bondes e construir mais de 300 km de rodovias. A proposta foi rejeitada pela população e o transporte público continuou a se desenvolver.
Atualmente, a cidade segue investindo no setor, com novas linhas de bonde e a ampliação da rede de ciclovias, que vai ligar todas as principais áreas residenciais ao centro. “Muita gente simplesmente não precisa de carro, porque o transporte público é bom e elas podem caminhar ou pedalar”, diz Utriainen.
Com menos carros nas ruas e uma infraestrutura pensada para pedestres e ciclistas, é natural que as vias se tornem mais seguras. E quanto mais pessoas se deslocam a pé ou de bicicleta, mais atentos ficam os motoristas.
MELHORIA CONTÍNUA
Sempre que ocorre um acidente fatal na Finlândia, uma equipe especializada – que inclui engenheiros de tráfego – analisa o caso. A análise leva em conta não só as ações dos motoristas e vítimas, mas também como o ambiente pode ter contribuído. Se um cruzamento é considerado perigoso, especialmente se já foi palco de outros acidentes, a cidade age para redesenhá-lo.
Helsinque também enfrenta novos desafios, como o aumento no número de SUVs, que tendem a causar danos mais graves em colisões. “É algo que precisaremos monitorar”, diz Utriainen.
Ainda assim, os resultados comprovam que a estratégia funciona. Em 2019, a cidade não registrou nenhuma morte de pedestres ou ciclistas. No último ano, pela primeira vez, não houve nenhuma morte no trânsito – nem mesmo de ocupantes de veículos. Para outras cidades que ainda lutam para alcançar as metas da Visão Zero, Helsinque é a prova de que é possível chegar lá.