A falsa economia do corte de trainees: o futuro do trabalho é humano-digital
Empresas que reduzem programas de entrada e apostam só em tecnologia comprometem o futuro de seus talentos e da própria inovação

Uma tendência preocupante começa a se espalhar entre algumas das empresas de tecnologia mais conhecidas. Spotify, Shopify, Dropbox e outras estão reduzindo programas de treinamento e diminuindo drasticamente as contratações em cargos de entrada.
À primeira vista, a decisão pode parecer lógica: cortar custos, reorganizar equipes e preparar-se para um futuro movido por inteligência artificial. Mas, na prática, trata-se de uma medida de curto prazo que ameaça causar danos duradouros.
A taxa de desemprego entre recém-formados já chega a 5,8% nos Estados Unidos – acima da média nacional e o pior índice da última década fora do período da pandemia. Mais de 40% dos graduados estão subempregados, ocupando funções que não exigem diploma universitário.
Desde meados de 2022, o número de vagas de entrada caiu mais de 40%. Mesmo estudantes de áreas consideradas “seguras”, como ciência da computação ou engenharia, têm dificuldade em encontrar posições compatíveis com sua formação.
Mas os jovens profissionais buscam mais do que salário. Eles querem aprender, integrar-se a programas estruturados e trabalhar em equipes que acreditem em seu potencial. Ao desmontar essas iniciativas, as empresas cortam o próprio fluxo de talentos que sustentaria o futuro.
O que o mercado precisa agora são pessoas capazes de trabalhar lado a lado com a IA: analistas que saibam aplicar machine learning para tomar decisões mais inteligentes, gerar produtos mais bem desenhados e criar experiências mais personalizadas para clientes. Esse tipo de competência não se cria de um dia para o outro: requer anos de investimento.
O PERIGO DA VISÃO DE CURTO PRAZO
Eliminar programas de trainees e analistas pode agradar a investidores em um trimestre, mas deixa as companhias com lacunas de liderança que duram anos. Essas iniciativas sempre foram campos de treinamento para talentos promissores. Elas constroem visão de negócios, refinam habilidades técnicas e transmitem cultura organizacional, ativos que não se contratam da noite para o dia.
Um banco de investimentos, por exemplo, decidiu manter seu programa de analistas mesmo em meio a demissões. Hoje, conta com uma forte base de líderes preparados para o futuro digital. Já concorrentes que cortaram esses programas agora correm para preencher lacunas, pagando mais caro para contratar profissionais de fora e enfrentando prazos longos de adaptação.
A consequência vai além de uma simples falta temporária de pessoal qualificado: é a erosão lenta do conhecimento institucional, da capacidade de inovação e da manutenção da cultura da empresa. Nenhum desses fatores pode ser substituído por tecnologia ou por contratações apressadas.

A própria evolução da inteligência artificial confirma o argumento. O ChatGPT, por exemplo, foi treinado por milhares de revisores humanos – em sua maioria, universitários – que ofereceram contexto, julgamento e feedback. A IA é poderosa, mas ainda depende do conhecimento humano para evoluir.
Algumas empresas já entenderam isso e estão criando o que eu chamo de recursos humanos digitais – pessoas e IA trabalhando lado a lado, cada um com seus pontos fortes. Elas contratam e treinam funcionários para integrar a tecnologia no trabalho diário.
Em um desses casos, analistas da geração Z tiveram acesso antecipado a ferramentas de IA e, em poucos meses, se tornaram especialistas internos, otimizando processos, elevando a eficiência e ensinando colegas mais seniores a usar a tecnologia de forma eficaz.
O NOVO FORMATO DAS ORGANIZAÇÕES
Durante boa parte do século 20, empresas foram estruturadas como pirâmides: uma base larga de jovens funcionários que alimentava camadas cada vez menores de gerência. Mais recentemente, consultores passaram a sugerir o modelo “diamante”, com base estreita, meio largo e topo enxuto.
O futuro, porém, deve ser diferente: um modelo fluido que combina aprendizagens no estilo de consultorias, a flexibilidade da gig economy e o trabalho potencializado pela IA. Profissionais vão contribuir para múltiplos projetos em diferentes empresas, com a IA atuando como multiplicadora de capacidades.
Eliminar programas de trainees deixa as companhias com lacunas de liderança que duram anos.
Esse formato favorece pessoas adaptáveis e multifuncionais, capazes de navegar entre ecossistemas. A geração Z está bem posicionada para prosperar nesse cenário: são nativos digitais, cresceram cercados por tecnologia e já experimentam ferramentas de IA.
Em vez de deixá-los de lado, as empresas deveriam explorar sua curiosidade, aliviar tarefas burocráticas e oferecer problemas relevantes a serem resolvidos desde cedo na carreira.
VANTAGEM COMPETITIVA
O aprendizado se acumula com o tempo, assim como a negligência. Empresas que, anos atrás, investiram em programas de formação hoje contam com líderes leais, experientes e com vantagem competitiva.
Cortar esses programas agora é como remover a fundação de um prédio para economizar na manutenção. A construção pode até aguentar por um tempo, mas vai acabar desmoronando.
O futuro do trabalho não será menos humano, será mais humano. Mais mentoria, mais aprendizado e mais colaboração entre pessoas e máquinas.
As companhias que apostarem desde já em recursos humanos digitais vão liderar a próxima década. As que não fizerem isso, provavelmente vão se arrepender de não terem enxergado mais adiante.