5 perguntas para Michel Alcoforado, antropólogo e escritor
Autor do livro "Coisa de Rico", o fundador da consultoria Consumoteca fala sobre as contradições que sustentam as fortunas brasileiras

"Coisa de Rico" (Todavia) está há semanas entre os livros mais vendidos da Amazon e das principais livrarias brasileiras. Na obra, Michel Alcoforado mergulha nas contradições da elite nacional e mostra como os endinheirados constroem códigos invisíveis para reforçar privilégios e naturalizar desigualdades.
O resultado é um retrato mordaz e preciso de como a riqueza é performada no Brasil, da ostentação nas redes sociais ao luxo silencioso das famílias tradicionais.
Doutor em antropologia social pela Universidade de Brasília, Alcoforado se tornou conhecido como o “antropólogo do luxo” ao investigar o impacto do consumo na vida dos brasileiros.
Fundador da Consumoteca, hub de empresas de pesquisa e consultoria de tendências, atua como consultor estratégico de grandes companhias na América Latina, além de ser comentarista da CBN e host do podcast "É Tudo Culpa da Cultura", um dos mais ouvidos do país.
Nesta entrevista à Fast Company Brasil, Alcoforado fala sobre as contradições que sustentam as fortunas brasileiras: a dificuldade de discutir taxação de grandes fortunas, o papel das redes sociais na ostentação, os limites entre filantropia e ESG e se há, de fato, espaço para romper as estruturas que mantêm o Brasil como um dos países mais desiguais do mundo.
FC Brasil – Como discutir a taxação de grandes fortunas em um país em que quase ninguém, nem mesmo os bilionários, se reconhecem como ricos?
Michel Alcoforado – A gente precisa falar disso no Brasil, mas não é do jeito que estamos falando. Falar em grandes fortunas é difícil, porque os mais ricos não se reconhecem como tal.
Vou contar uma história: semanas atrás, estava conversando com um executivo progressista. Ele me disse: "sou super a favor de taxar os super ricos. Mas quem ganha R$ 1,5 milhão por ano não é super rico." Essa pessoa não entende o valor do dinheiro.
Aqui não tem a ideia de que uma pessoa rica também deve à sociedade, de que deve dar um retorno para ela.
Seria muito mais útil se a gente conseguisse mostrar para uma pessoa que mora em Pinheiros, viaja todo ano de férias, tem filho em escola particular, empregada doméstica, pede iFood uma vez por semana, vai ao restaurante e toma um drinque de R$ 50 para se divertir. Mostrar que esse é o estilo de vida das elites no Brasil. Esse é o fulano que precisa entender que tem uma vida privilegiada. Esse é o fulano que a gente precisa taxar. Sair da abstração de uma “grande fortuna”.
Acho dificílimo que a taxação dos super-ricos passe neste governo Lula. A sociedade brasileira não está entendendo o debate. E a taxação de herança não vai passar nunca no Brasil.
Aqui, a gente gosta de acreditar que o fulano que herdou um apartamento herdou porque merecia. Que foi uma conquista da família. Ninguém entende que ele herdou uma empresa, uma fazenda, um sobrenome por ser fruto de uma construção social que colocou essa pessoa onde ela está.
Todo mundo é a favor do imposto, desde que o taxado seja o vizinho. Não existe vínculo de reciprocidade na sociedade. A gente não tem percepção do esforço coletivo. Imposto, no Brasil, é uma dívida com a família, não com a sociedade.
FC Brasil – A ostentação está no centro das redes sociais, com criadores de conteúdo que ficaram ricos mostrando marcas de luxo. Como essa lógica da exposição dialoga (ou colide) com os códigos de “diferenciação” da elite brasileira?
Michel Alcoforado – A ostentação das redes sociais é uma mistura de “te quero muito” e “Deus me livre”. No Brasil, não temos um símbolo claro de percepção de quem é rico ou não, ficam todos batalhando pelo reconhecimento que o outro tem da nossa riqueza. E isso é uma construção simbólica.
As redes sociais têm um papel importante na exibição do estilo de vida para atingir um certo público, para que ele reconheça ou seja reconhecido como elite. Mas tem um outro aspecto, eu costumo brincar que toda vez que um rico mostra uma “coisa de rico” nas redes sociais, morre uma senhora no Jardim Europa.
A bolsa que é ostentada online começa a perder o seu valor diferencial, logo, esse símbolo fica “gasto”. A Birkin que aparece nos stories e no feed da influenciadora perde o “valor”, em pouco tempo tem réplica na 25 de Março porque é entendido que aquilo é uma “bolsa de madame”. E mais Birkins aparecem. O símbolo se desgasta.

A gente precisa da exposição para reinventar quem a gente é. Mas, na medida em que se expõe demais, vai deixando as coisas gastas.
Na França, por exemplo, é comum entre os mais ricos considerar a compra de um item de luxo como um investimento. Tipo: “estou comprando esse relógio, mas ele vai ficar para o meu bisneto.” Lá, é melhor você herdar um Rolex do que comprar um. Para os ricos franceses, quem compra um Rolex vale menos do que quem herdou um.
Aqui no Brasil não temos isso, porque os objetos ficam simbolicamente gastos muito antes de acabarem materialmente. Não dá para tomar como investimento porque, em pouco tempo, ele não tem mais valor.
FC Brasil – Ao longo da pesquisa, você viu como a digitalização redefine o consumo e até a nossa relação com o dinheiro. Essa transformação tem potencial de reduzir desigualdades ou só reforça as barreiras de sempre?
Michel Alcoforado – Vamos reduzir a desigualdade quando todos entenderem que desigualdade não é um problema do Estado. Que todos estamos envoltos nela. A desigualdade social brasileira é resultado de um modelo de pensamento, um modelo que acredita que, para viver em sociedade, a gente precisa mais de distância do que de ponte.
Não estou falando apenas dos super ricos, mas da sociedade como um todo. Desde as classes médias até a moça que trabalha para a gente, todos acreditam que, se a pessoa “não é igual”, ela precisa ficar longe. E a gente, que se acha melhor, quer operar no cotidiano criando essas separações. Mas isso não vai dar certo.
Todo mundo é a favor do imposto, desde que o taxado seja o vizinho. Não existe vínculo de reciprocidade na sociedade.
Olha o que está acontecendo com a Sala VIP do Mastercard do Aeroporto de Guarulhos. Era um espaço que vivia cheio de filas. Agora fizeram uma regra que, para entrar lá, precisa ter comprovado o gasto acima de R$ 5 mil nas últimas três faturas.
Não adianta mais ter um Mastercard Black, precisa ter gasto. Se você der uma olhada nos comentários das redes sociais? As pessoas estão comemorando.
É importante reconhecer como o jeito de pensar atravessa todos nós. A classe média alta reclama que o aeroporto “virou rodoviária”, mas a gente reclama quando o Tinder foi “orkutizado”. Quando o bar não está bom porque “tem gente estranha”.
A gente sabe o que está em jogo quando falam esses termos. São termos que aparecem quando a gente quebra as distâncias que organizam o nosso jeito de pensar.
FC Brasil – A elite brasileira adora falar em ESG e impacto social mas, na prática, parece mais interessada em greenwashing ou charity de fachada. Você vê algum espaço para que filantropia e responsabilidade social sejam usadas de forma real para redistribuir poder?
Michel Alcoforado – Não. O melhor exemplo para mim é o Giving Pledge, que é o principal compromisso filantrópico para bilionários. Warren Buffett e Bill Gates assinaram esse acordo, se comprometendo a doar parte da sua fortuna para os mais pobres, um retorno para o que ganharam.
O Brasil tem em média 60 bilionários e apenas dois assinaram esse compromisso. E nenhum dos dois é brasileiro, são pessoas que fizeram fortuna no Brasil e vivem aqui, mas não são brasileiros.
Aqui não tem a ideia de que uma pessoa rica também deve à sociedade, de que deve dar um retorno para ela. A filantropia não se estrutura pelo “bom coração”, pelo “desejo de ajudar o próximo”. Ela se estrutura sobre a maneira como as pessoas dão sentido ao dinheiro. No Brasil, doar para os mais pobres não faz sentido dentro da lógica social.


O vínculo de reciprocidade é sempre com a família. Outro aspecto decisivo é que a gente acha que o problema dos mais pobres é do Estado e não da sociedade. A filantropia melhorou nos últimos anos, se compararmos com o que havia antes da pandemia. Mas ainda está muito longe da escala necessária para o tamanho dos nossos problemas.
A filantropia no Brasil está muito ligada a vocações religiosas. Os ricos encontram algum caminho por aí: “isso está doendo para a igreja, então eu doo para a igreja”, “doei para Santa Dulce”. Assim é possível dar sentido para a doação.
Isso não é culpa de ninguém, é um fenômeno social; ricos ou não, estamos todos envolvidos na construção dessa estrutura.
FC Brasil – Depois de 15 anos infiltrado nesses círculos, você consegue enxergar alguma brecha real para romper essas estruturas ou estamos condenados a repetir, no futuro, os mesmos códigos de exclusão que moldam o Brasil de hoje?
Michel Alcoforado – Acho que o primeiro passo para mudar os códigos é entender os códigos. Colocar o Brasil no espelho, nos reconhecer. Tenho certeza de que muitas pessoas ricas e de classe média se reconheceram nesse livro.
Enquanto a sociedade brasileira não parar para pensar que desse jeito que está estruturada é ruim para todo mundo, não vai dar para mudar nada. Precisamos abrir a cabeça e refletir.