Da redação ao algoritmo: o novo papel dos jornalistas no futuro da IA
Questionar, checar fatos e traduzir complexidade: o que sempre definiu o jornalismo agora é o que garante vantagem competitiva no uso de inteligência artificial

Ferramentas de escrita automatizada, robôs repórteres e feeds algorítmicos de notícias parecem ameaçar os empregos dos jornalistas. Mas, do ponto de vista de quem já liderou empresas de IA e hoje assessora executivos em diferentes setores, esse medo é equivocado. Na verdade, líderes empresariais inteligentes deveriam estar recrutando jornalistas agora.
A inteligência artificial não é apenas um salto tecnológico, mas uma mudança cognitiva. Ela recompensa aqueles que sabem interrogar, traduzir e sintetizar. E isso é justamente o que jornalistas vêm treinando durante toda a carreira. Longe de serem deixados para trás, eles estão prontos para se tornarem alguns dos usuários mais eficazes de IA.
De fato, os melhores usuários de IA não são os que aceitam cegamente o que o sistema produz. São os que sabem como pressionar a máquina: identificar quando uma resposta é superficial, formular perguntas de acompanhamento mais afiadas, checar inconsistências e extrair valor real.
Para jornalistas, isso é quase instintivo:
- Questionar premissas: eles não se contentam com a primeira resposta; seguem até chegar a algo sólido.
- Separar sinal de ruído: diante de uma enxurrada de informações, sabem filtrar o que importa.
- Usar o ceticismo como disciplina: jornalistas conferem, testam e verificam.
- Pensar sempre no público: são profissionais que reúnem fatos para transformá-los em insights que ajudem os outros a agir.
Essas práticas são exatamente as que tornam a IA generativa não apenas útil, mas transformadora.
DAS REDAÇÕES ÀS REDES NEURAIS
Descobri isso cedo. No terceiro ano escolar, uma repórter visitou minha sala no “dia das profissões”. Ela foi a única mulher ali e deixou uma marca inesquecível. Anos depois, ingressei na rede de TV ABC News logo após a faculdade, não como repórter, mas como produtora.
Produzir significava me dedicar ao que eu mais gostava: fazer perguntas e formatar histórias, sem a pressão da câmera. Em uma única semana, eu poderia cobrir um ataque terrorista, entrevistar o presidente e, logo depois, mergulhar em pautas sobre treinamento de elefantes ou reciclagem de lixo.

O fio condutor era sempre o mesmo: absorver rapidamente temas complexos, formular as perguntas certas e organizar o caos dentro do prazo.
Essa versatilidade é justamente o que o trabalho com IA exige hoje. Modelos de linguagem podem soar como fontes confusas – eles divagam, se contradizem ou "alucinam". Jornalistas sabem como guiar a conversa, esclarecer pontos duvidosos e confrontar respostas com informações independentes.
Minha carreira depois se expandiu além do jornalismo. Fundamos empresas na vanguarda da IA aplicada à mídia e hoje atuo como consultora em diferentes setores, de entretenimento a biotecnologia. Mas sigo abordando cada projeto como jornalista: começo curiosa, faço perguntas melhores e traduzo complexidade em clareza.
JORNALISTAS E IA
Muitos executivos buscam especialistas técnicos para conduzir suas iniciativas de IA. Isso faz sentido, mas não é suficiente. O sucesso com IA não depende apenas de excelência técnica, exige agilidade cognitiva. Os líderes que mais se beneficiam da tecnologia são os que se cercam de pessoas capazes de interrogar o sistema, e não apenas de operá-lo.
Por isso, jornalistas são tão valiosos. Eles são entrevistadores natos da IA – persistentes, céticos e não se deixam levar por distrações irrelevantes. Sabem lidar com contradições, formular perguntas melhores e traduzir informações em decisões práticas.
os melhores usuários de IA são os que sabem como pressionar a máquina.
Minha recomendação é simples: coloquem jornalistas nas salas onde a IA está sendo construída e aplicada – seja para dar forma a produtos, testar insights ou se comunicar de forma clara com clientes.
Para mim, essa percepção é um retorno às origens. O jornalismo me ensinou a questionar, testar e traduzir. A estratégia, em IA, exige a mesma mentalidade. As ferramentas mudaram, mas o trabalho é surpreendentemente familiar.
Ao compartilhar essa visão com um líder sênior de uma gestora global, ouvi dele sem rodeios: “minha próxima contratação será um jornalista”. Ele entendeu o que mais executivos precisam perceber: na era da IA, os jornalistas são os que estão mais preparados para fazer as perguntas que liberam o verdadeiro potencial da tecnologia.