Entre o legal, o moral e o ético: dilemas de governança, pessoais e da vida real

Governança não é só sobre empresas. É sobre como decidimos, como conselheiros, como lideranças, como pessoas

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Ana Bavon 3 minutos de leitura

Este artigo nasceu em uma sala de aula do Programa Diversidade em Conselho (PDeC Raízes) do Instituto Brasileiro de Governança Corporativa (IBGC). Na dinâmica, assumimos o papel de um conselho diante de um caso concreto.

A tarefa era simples apenas na aparência: analisar a operação sob três lentes – legalidade, moralidade e princípios de governança. O resultado foi desconfortável: o que era legal não parecia moral; o que era moral ainda não se traduzia em ética.

Foi impossível não pensar em quantas vezes repetimos esse dilema fora da sala. No conselho, na vida, em decisões pessoais, enfrentamos a mesma pergunta: é legal, mas é certo?

Recentemente, um caso trouxe esse debate para as manchetes. O Itaú desligou, em massa, centenas de funcionários em regime remoto e híbrido, como parte de uma estratégia de reorganização baseada em métricas de produtividade digital.

Nada indica ilegalidade à primeira vista: a CLT permite dispensas, o STF já delimitou regras para demissões coletivas e a empresa comunicou seus critérios. Mas a pergunta que ecoa é outra: será que basta estar dentro da lei?

Porque a legalidade é sempre o piso – nunca o teto.

A legalidade é o que se pode fazer. É o que a norma escrita permite.

A moralidade é o que nossa comunidade reconhece como aceitável em determinado tempo histórico.

A ética é o que resiste à prova do universal: posso desejar que esta decisão valha como princípio para todos? (para lembrar Kant).

Se cada empresa passasse a medir pessoas por cliques, por tempo de tela, por métricas algorítmicas invisíveis, que mundo do trabalho estaríamos criando? E se cada conselho aceitasse que demissões em massa são apenas um “direito do empregador”, que pacto social sobraria entre capital e trabalho?

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A filosofia crítica negra nos alerta desde sempre: Fanon mostrou como sistemas podem ser legais e, ainda assim, desumanos. bell hooks traduz ética em prática diária de cuidado e responsabilidade.

Mbembe nos lembra que políticas de gestão podem operar necropolíticas sem jamais sair do quadrado da legalidade. Esses autores nos obrigam a ver o óbvio: o legal pode ser profundamente imoral.

O QUE A GOVERNANÇA SOCIAL NOS ENSINA

No caso Itaú, a pergunta não é só “a lei permite?”. É sobre equidade, quando questionamos se as métricas digitais consideraram assimetrias reais de trabalho remoto: cuidado com filhos, infraestrutura, acessibilidade.  

É sobre transparência quando pesquisamos se os critérios estavam claros e acessíveis para todos, como exige a LGPD. 

No conselho, na vida, em decisões pessoais, enfrentamos a mesma pergunta: é legal, mas é certo?

É sobre responsabilidade quando buscamos saber se foram avaliados impactos de longo prazo sobre clima interno, confiança e reputação da marca empregadora. 

É sobre accountability quando inquirimos se o conselho se colocou publicamente como responsável pela decisão ou terceirizou para “o algoritmo”?

Quando a governança se reduz a checklist legal, ela trai a própria ideia de consistência institucional.

DA SALA DE AULA PARA A VIDA REAL

O exercício do IBGC me fez relembrar que os dilemas de conselho são os mesmos dilemas da vida real.

É legal se calar diante de uma injustiça. Mas é moral? É ético?

É legal monitorar funcionários. Mas é ético fazê-lo sem transparência, sem debate, sem due process?

É legal demitir. Mas é ético reduzir seres humanos a métricas de produtividade invisíveis?

Governança não é só sobre empresas. É sobre como decidimos, como conselheiros, como lideranças, como pessoas.

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Dedico este artigo às minhas colegas, aos meus colegas do curso de Governança do IBGC e ao professor Gustavo Moraes Stolagli. Foi muito bom discutir com vocês e reafirmar que o trabalho de governança é, no fundo, o mesmo trabalho da vida: alinhar o que é legal, o que é moral e o que é ético.

A lei estabelece limites. A moralidade traduz valores de época. Mas é a ética, essa exigência de coerência, de universalidade, de humanidade, que sustenta o legado.

No fim, a pergunta que importa não é “podemos fazer?”. É “se todos fizessem, esse mundo seria habitável?”


SOBRE A AUTORA

Ana Bavon é advogada e estrategista especializada em governança social, impacto corporativo e responsabilidade institucional, fundador... saiba mais