Entre o legal, o moral e o ético: dilemas de governança, pessoais e da vida real
Governança não é só sobre empresas. É sobre como decidimos, como conselheiros, como lideranças, como pessoas

Este artigo nasceu em uma sala de aula do Programa Diversidade em Conselho (PDeC Raízes) do Instituto Brasileiro de Governança Corporativa (IBGC). Na dinâmica, assumimos o papel de um conselho diante de um caso concreto.
A tarefa era simples apenas na aparência: analisar a operação sob três lentes – legalidade, moralidade e princípios de governança. O resultado foi desconfortável: o que era legal não parecia moral; o que era moral ainda não se traduzia em ética.
Foi impossível não pensar em quantas vezes repetimos esse dilema fora da sala. No conselho, na vida, em decisões pessoais, enfrentamos a mesma pergunta: é legal, mas é certo?
Recentemente, um caso trouxe esse debate para as manchetes. O Itaú desligou, em massa, centenas de funcionários em regime remoto e híbrido, como parte de uma estratégia de reorganização baseada em métricas de produtividade digital.
Nada indica ilegalidade à primeira vista: a CLT permite dispensas, o STF já delimitou regras para demissões coletivas e a empresa comunicou seus critérios. Mas a pergunta que ecoa é outra: será que basta estar dentro da lei?
Porque a legalidade é sempre o piso – nunca o teto.
O CORTE FINO ENTRE LEGAL, MORAL E ÉTICO
A legalidade é o que se pode fazer. É o que a norma escrita permite.
A moralidade é o que nossa comunidade reconhece como aceitável em determinado tempo histórico.
A ética é o que resiste à prova do universal: posso desejar que esta decisão valha como princípio para todos? (para lembrar Kant).
Se cada empresa passasse a medir pessoas por cliques, por tempo de tela, por métricas algorítmicas invisíveis, que mundo do trabalho estaríamos criando? E se cada conselho aceitasse que demissões em massa são apenas um “direito do empregador”, que pacto social sobraria entre capital e trabalho?

A filosofia crítica negra nos alerta desde sempre: Fanon mostrou como sistemas podem ser legais e, ainda assim, desumanos. bell hooks traduz ética em prática diária de cuidado e responsabilidade.
Mbembe nos lembra que políticas de gestão podem operar necropolíticas sem jamais sair do quadrado da legalidade. Esses autores nos obrigam a ver o óbvio: o legal pode ser profundamente imoral.
O QUE A GOVERNANÇA SOCIAL NOS ENSINA
No caso Itaú, a pergunta não é só “a lei permite?”. É sobre equidade, quando questionamos se as métricas digitais consideraram assimetrias reais de trabalho remoto: cuidado com filhos, infraestrutura, acessibilidade.
É sobre transparência quando pesquisamos se os critérios estavam claros e acessíveis para todos, como exige a LGPD.
No conselho, na vida, em decisões pessoais, enfrentamos a mesma pergunta: é legal, mas é certo?
É sobre responsabilidade quando buscamos saber se foram avaliados impactos de longo prazo sobre clima interno, confiança e reputação da marca empregadora.
É sobre accountability quando inquirimos se o conselho se colocou publicamente como responsável pela decisão ou terceirizou para “o algoritmo”?
Quando a governança se reduz a checklist legal, ela trai a própria ideia de consistência institucional.
DA SALA DE AULA PARA A VIDA REAL
O exercício do IBGC me fez relembrar que os dilemas de conselho são os mesmos dilemas da vida real.
É legal se calar diante de uma injustiça. Mas é moral? É ético?
É legal monitorar funcionários. Mas é ético fazê-lo sem transparência, sem debate, sem due process?
É legal demitir. Mas é ético reduzir seres humanos a métricas de produtividade invisíveis?
Governança não é só sobre empresas. É sobre como decidimos, como conselheiros, como lideranças, como pessoas.

Dedico este artigo às minhas colegas, aos meus colegas do curso de Governança do IBGC e ao professor Gustavo Moraes Stolagli. Foi muito bom discutir com vocês e reafirmar que o trabalho de governança é, no fundo, o mesmo trabalho da vida: alinhar o que é legal, o que é moral e o que é ético.
A lei estabelece limites. A moralidade traduz valores de época. Mas é a ética, essa exigência de coerência, de universalidade, de humanidade, que sustenta o legado.
No fim, a pergunta que importa não é “podemos fazer?”. É “se todos fizessem, esse mundo seria habitável?”
