Além do streaming e da inteligência artificial: o cinema busca novos caminhos

Ao apostar em experiências presenciais, o estúdio independente A24 mostra como a criatividade humana ainda é a arma mais poderosa contra a saturação da IA

Crédito: A24/ Divulgação

Geoff Cook 4 minutos de leitura

Muito se falou sobre a aquisição do Teatro Cherry Lane pelo estúdio A24 (que fez “Tudo em todo lugar ao mesmo tempo”, entre outros filmes de sucesso).

Mais antigo teatro off-Broadway em funcionamento contínuo em Nova York, o Chery Lane reabriu há um mês, com uma semana inteira de performances e eventos  especiais – incluindo a participação de nomes importantes da indústria, como Spike Lee e Sofia Coppola.

O que poderia parecer um projeto excêntrico de um estúdio independente conhecido por filmes como “Lady Bird”, “Joias Brutas” e “Hereditário” é, na realidade, um movimento calculado em uma indústria marcada pela disrupção e pela fadiga do streaming.

A performance ao vivo é uma das poucas experiências culturais que não podem ser automatizadas, replicadas ou reproduzidas sob demanda. Ao entrar no teatro, o A24 cria uma espécie de proteção contra um futuro saturado de inteligência artificial, ao mesmo tempo em que aprofunda sua pegada cultural.

entrada do  teatro Cherry Lane, em Nova York
Crédito: Dia Dipasupil/ Getty Images

Quando o negócio foi anunciado, no fim de 2023, as especulações tinham um tom pragmático. “É sobre sinergias criativas.” “Eles estão diversificando suas receitas para reduzir a volatilidade do cinema.” “Podem testar novas histórias em um ambiente de baixo risco.”

Eram todos comentários válidos. Mas então um amigo, executivo experiente da indústria cinematográfica, levantou uma hipótese intrigante: “será que eles não estão se diferenciando ainda mais ao construir uma marca à prova do futuro?” Para mim, a partir daí, tudo ganhou outra perspectiva.

A maioria dos estúdios de cinema entende que suas franquias são marcas que podem ser exploradas. Mas, quando o assunto é a própria identidade, há pouca ou nenhuma atenção a uma boa narrativa sobre o que eles representam.

Existe apenas um setor que se comporta de forma parecida: a indústria farmacêutica. As grandes empresas querem que seus pacientes conheçam os nomes dos remédios – Prilosec, Viagra, Prozac – mas não se preocupam com a percepção sobre elas mesmas.

O A24 foge à regra. É um dos raros estúdios de Hollywood que parece construir uma marca genuinamente querida. As perguntas a fazer são: como eles estão construindo uma marca de classe mundial? E por que isso importa?

cena do filme"Tudo em todo lugar ao mesmo tempo", do estúdio A24
"Tudo em todo lugar ao mesmo tempo" (Crédito: A24)

O CONTEÚDO AINDA É REI

Uma ideia simples continua válida em um mundo em rápida transformação: a criatividade vence – cada vez mais. O ditado “o conteúdo é rei” circula na indústria do entretenimento há anos, mas parece ser esquecido a cada novo ciclo de negócios.

Em seu lugar, multiplicam-se frases como “estamos aproveitando análises de público orientadas por IA e algoritmos preditivos para revolucionar a criação de conteúdo por meio de otimização em tempo real de sentimentos” ou “é uma mudança de paradigma que democratiza a narrativa através de matrizes orientadas por dados”.

Cena do filme "A morte de um unicórnio", do estúdio  A24
"A morte de um unicórnio" (Crédito: A24)

Fica cada vez mais evidente que o público não quer um modelo gerado por IA nos comerciais de cerveja ou música feita por máquina “que o Nirvana poderia ter escrito”. O que as pessoas querem é surpresa, frescor, novidade.

As marcas que realmente importam hoje são as ousadas. Os cinco grandes estúdios de Hollywood ((Universal, Paramount, Warner Bros., Disney e Sony) são empresas de capital aberto, o que os obriga a priorizar retorno para acionistas e mitigação de risco.

Cena do filme "Midsommar", do estúdio A24
"Midsommar" (Crédito: A24)

Mas os maiores retornos históricos no cinema, seja em percentual ou em expansão para novos negócios, vieram justamente dos que se arriscaram. O A24 exemplifica esse espírito hoje, e a compra do Cherry Lane é a mais recente prova disso.

OUSADIA CRIATIVA

Outro princípio central na construção de uma marca forte para um estúdio é o mesmo conselho que vale para empresas em geral: “faça o que os robôs não podem.” No fundo, é um eufemismo para valorizar a interação humana.

Isso é especialmente relevante agora. Especialistas reconhecem que estamos vivendo uma “epidemia de solidão”. Nesse contexto, o A24 não está apenas comprando um prédio: está investindo no tipo de experiência presencial que as pessoas desejam.

Cena do filme "Coração de Lutador", do estúdio A24
"Coração de Lutador" (Crédito: A24)

De forma consciente ou intuitiva, o estúdio vem consolidando uma marca cada vez mais poderosa, que se traduz em ousadia criativa. Criou uma base de fãs quase cult que se identifica com esse universo, e isso lhe dá licença para expandir para qualquer área de negócio que compartilhe da mesma visão.

O Cherry Lane é um movimento inicial fascinante que protege a empresa de um futuro saturado por IA. A pergunta é: outros seguirão esse caminho?

cena do filme "Joias Brutas", do estúdio A24
"Joias Brutas" (Crédito: A24

Será que os estúdios também vão enxergar oportunidade em reunir pessoas, talvez incorporando experiências de cinema de próxima geração aos seus negócios? Poderiam mesclar hospitalidade e entretenimento em parcerias para criar locais imersivos?

A porta está aberta. E o A24 foi o primeiro a atravessá-la.

Com informações da Fast Company Brasil


SOBRE O AUTOR

Sócio da agência global de branding Base Design e consultor estratégico do conglomerado de beleza Waldencast. saiba mais