Diante do caos da existência, só a arte salva

A história mostra que é sempre a cultura que abre frestas quando os muros parecem intransponíveis

pessoas em meio a um emaranhado de fios
Créditos: Orbon Alija/ Getty Images

Fred Gelli 4 minutos de leitura

Como já dizia Gilberto Gil, “vida é confusão”. Descobri isso de forma literal nos meus 59 anos, quando decidi comemorar com um festão (muito mais legal do que festejar os óbvios 60!), cujo tema era exatamente esse: “vida, a preciosa confusão”.

A proposta era simples. Celebrar a arte de viver como a capacidade de manejar, melhor ou pior, o caos inevitável da existência. Flexibilidade diante dos desafios, valorizar o que se aprende nos momentos difíceis, fazer do limão uma limonada, transformar encrenca em oportunidade.

E eu levei a sério. A trilha do “áudio-convite” da festa foi o "Concerto para piano e cachorro pequeno, em dó maior", em que, no meio de uma gravação comigo tocando piano, nosso cachorro Zé Pequeno começa a latir (para os curiosos, vale “ouvir o convite” no áudio artigo). Eu reclamo com ele, mando ele parar.

Como ele não me obedece, de repente começo a entender que… tava legal! E a gente começa a levar um som juntos! Minhas filhas dizem que é positividade tóxica. Mas eu insisto e sigo achando, até que me provem o contrário, que vale a pena tentar achar o lado melhor em… quase tudo. A sorte de estarmos vivos neste planeta incrível nos traz a obrigação de honrá-la e celebrá-la.

Quanto à festa, claro, foi um retrato dessa mistura em todos os sentidos. Começando pelo rango: ao invés do "bufê harmonizado", a bagunça das coisas mais gostosas da cidade do arroz de cordeiro da Sônia ao sushi do Gurume, das saladas do Celeiro ao sorvete de pera do Momo, amanhecendo com pão na chapa, café coado e chocolate da Dengo!

Um cardápio caótico e delicioso, como a vida de fato é. Uma preciosa confusão, escolhida, cultivada, celebrada. Quando me dei conta, percebi: mais do que comida, música e arte, meu desejo maior, ao investir tempo, energia e grana para reunir 250 amigos, era criar um espaço para encontros. Gente diferente, de mundos diversos, compartilhando música, dança, conversa. E funcionou!

Sempre que a liberdade é ameaçada, a cultura se levanta como trincheira.

Doze horas de festa em que celebramos as misturas inusitadas, o caos, catalisando a diversidade. Amigos das minhas filhas com amigos do meu pai, meus irmãos e irmãs da vida toda conhecendo os amigos de amigos que chegavam. E por aí foi…

No fundo, é isso que as celebrações fazem: elas juntam as pessoas. Festas são a origem da cultura. Das celebrações das colheitas às festas para os mortos, a cultura emerge dessa necessidade humana de compartilhar razões para seguirmos juntos como grupo, como famílias, como nações.

Talvez por isso tenha sido tão simbólico que, no dia seguinte, o domingo, 21 de setembro, tenha acontecido essa catarse em escala nacional. O Brasil, mergulhado em uma confusão sem tamanho, com julgamentos, discursos inflamados, turbulências e ruídos de toda ordem, e então, na praia de Copacabana, uma grande festa pela liberdade, pela democracia, catalisa a multidão. Chico Buarque, Caetano Veloso, Gilberto Gil, Djavan e Paulinho da Viola reunindo mais de 40 mil pessoas nas calçadas, nas areias.

quadro "Baile Popular", do pintor Di Cavalcanti
"Baile Popular" (1972), de Di Cavalcanti

Ali, a cultura funcionou como ímã, um polo de atração capaz de aproximar gente diversa: de esquerda, de direita, conservadores e progressistas. (Afinal, quem de verdade não gosta desses caras?) Pessoas que, em outro contexto, estariam separadas por nossos quase intransponíveis muros ideológicos, mas que, naquele instante, partilhavam o mesmo espaço, a mesma canção, o mesmo senso de pertencimento.

A cultura dilui fronteiras. Aproxima, conecta, mistura, cria vínculos, cumplicidade, sentido comum. A história está cheia dos melhores exemplos. Sempre que a liberdade é ameaçada, a cultura se levanta como trincheira.

Woodstock, em 1969, foi a resposta simbólica de uma geração à Guerra do Vietnã. As Diretas Já, nos anos 80, só ganharam força porque músicos, atores e poetas emprestaram sua voz ao desejo coletivo.

a cultura emerge da necessidade humana de compartilhar razões para seguirmos juntos como grupo, como famílias, como nações.

O Rock in Rio de 1985 foi mais do que entretenimento: foi o batismo de uma democracia que ainda engatinhava. A queda do Muro de Berlim foi celebrada em concerto, porque a música sabia o que a política ainda não conseguia formular.

Do rap tunisiano na Primavera Árabe às canções de exílio de Caetano e Gil, a história mostra que é sempre a cultura que abre frestas quando os muros parecem intransponíveis. E é exatamente pela sua capacidade de ativar resistências que todo líder autoritário investe pesado contra ela, desmerecendo-a, censurando-a.

A política oscila, avança e recua; ganham uns, perdem outros e vice-versa. Com a cultura é diferente. Ela pode ser abafada por um período, mas acaba sempre reemergindo. A cultura é o campo invisível, mas poderoso, em que se costura pertencimento, lembra valores essenciais e projeta futuro. É a ecologia da liberdade.

Talvez seja por isso que, diante da confusão, da violência, da sorte de loucuras e surrealismos que estamos vendo no mundo, só a arte possa nos salvar!


SOBRE O AUTOR

Fred Gelli é co-fundador e CEO da Tátil Design, consultoria de branding, design e inovação que desenha estratégias e experiências de m... saiba mais