Uma viagem ao Japão: como mangás exportam mais que histórias
Enquanto indústrias como a do cinema passam por dificuldades para se reinventar, o mangá e os animes seguem atraindo todas as gerações

Ser imigrante me ensinou algo fundamental: a importância de fazer perguntas em vez de julgamentos. Aprendi essa lição muito jovem, quando ganhei uma bolsa para estudar na China, onde entendi que quando você está fora da sua cultura, não pode se dar ao luxo de presumir – você precisa questionar e explorar para, quem sabe, entender.
A Ásia sempre me ensinou muito. E foi essa postura que me fez enxergar o universo dos mangás e animes de uma forma completamente diferente durante minha recente viagem ao Japão.
Viajei pela segunda vez com a equipe do KES, uma empresa que admiro muito, que organiza viagens com executivos para mergulhar em outras indústrias e conhecer como funcionam as principais economias do mundo.
Como uma nerd assumida, dois momentos foram especialmente marcantes: a conversa com Ken Kutaragi, inventor do PlayStation, e a palestra sobre mangás. Passei 23 dias no Japão, e cada lugar – templos ou lojas de souvenirs – estava repleto de turistas consumindo cultura, tanto tradicional quanto pop.
Foi lá que conheci a história de Angelo Mokutan, o único brasileiro a publicar um mangá reconhecido pela comunidade internacional.
Ele se mudou para o Japão com uma bolsa de estudos, aprendeu o idioma e perseguiu seu sonho de ser mangaká – desenhista de mangás. Sua publicação "Leonora" foi premiada no Japan Media Art Festival e "Zen Comics", traduzido para oito idiomas.
Não quero tirar o mérito das minhas próprias conquistas, mas sei que mudar para um lugar como o Japão – com diferenças tão profundas de cultura, idioma e valores – e prosperar lá é uma proeza e tanto, muito mais desafiadora do que as minhas ao mudar para a Espanha.
MAS, AFINAL, O QUE É MANGÁ?
De forma simples: mangás são histórias em quadrinhos japonesas para todos os públicos. Você provavelmente já assistiu a animes, aquelas adaptações de mangás para séries de TV ou filmes como "Pokémon" e "Dragon Ball". Eu cresci assistindo "Sailor Moon" e "Cavaleiros do Zoodíaco" nos anos 1990, e eles cresceram comigo.
Enquanto algumas histórias são voltadas para públicos mais jovens, outras são emocionalmente complexas, classificadas como 18+, cobrindo temas que vão desde um jogador baixinho de vôlei tentando se tornar elite (Haikyuu!!) até uma família de espiões com poderes especiais ("Spy x Family").

Mangás e animes movimentam bilhões. A indústria impressa e digital gera US$ 15 bilhões anuais, com projeção de atingir US$ 42,5 bilhões até 2030. Animes geram US$ 33 bilhões por ano, caminhando para US$ 63 bilhões em 2030.
No Brasil, o filme recém-lançado do Demon Slayer foi a quarta maior estreia nos cinemas brasileiros este ano – e, como era para maiores de 18 anos, deixou uma grande parcela do público de fora. A Netflix já entendeu isso: de acordo com o serviço de streaming, metade de seus usuários consomem anime na plataforma e o portfólio só cresce.
QUEBRANDO PRECONCEITOS
Durante nossa conversa com Angelo no Japão, alguém do grupo perguntou como uma cultura aparentemente tão calma e ordeira produz uma expressão artística que pode ser vista como violenta ou sexualizada. A resposta não deixou a desejar: depois de anos consumindo todo tipo de mangá, nosso palestrante disse que não consegue mais assistir Tom & Jerry.
Pense no enredo: um gato chamado Tom sendo constantemente humilhado por um rato chamado Jerry. Só porque não vemos como violento, não significa que não seja. O próprio Angelo produz mangás sobre conceitos do zen budismo – encontrando seu zen da forma mais literal possível.

Nossa bolha é limitada pelo que consumimos e conhecemos. Ela nos mostra apenas uma porção minúscula de uma indústria vastíssima.
Mangás e animes existem para todos os gostos: romance (incluindo uma enorme seleção de boy love – podemos falar sobre representatividade), fantasia, política, esportes, ficção científica. A lista é infinita e tão rica quanto a imaginação permite. Visitei lojas em Tóquio com sessões intermináveis e diversos andares (e cheias) que deixaria muita livraria com inveja.
E atravessa gerações. Se crianças leem sobre heróis, adultos leem sobre um ex-chefe da Yakuza que agora é dono de casa ("The Way of the Househusband"). Aliás, em um país tão machista, ter um chefe de gangue cuidando da casa é abrir uma conversa que está engatinhando na sociedade japonesa.
Animes geram US$ 33 bilhões por ano, caminhando para US$ 63 bilhões em 2030.
Vejo animes como histórias pessoais de crescimento. Para mim, eles retratam protagonistas muito humanos, com todas as suas falhas, tendo que escolher entre o bem e o mal ao longo de suas jornadas.
É sobre passar por desafios na vida buscando permanecer fiéis aos nossos valores. É para isso que servem histórias: para nos ajudar a tangibilizar conceitos complexos da vida, sejam elas fantasiosas ou realistas.
Durante as visitas, o grupo discutiu muito a temática da inovação. Se olharmos somente pela perspectiva tecnológica, o Japão está muito atrás da China, por exemplo, quando falamos de uso de inteligência artificial.

Mas a inovação se manifesta de diversas maneiras. Enquanto seguimos tendo uma visão limitada do que é considerado inovador, o Japão continua lucrando bilhões atraindo todas as gerações exportando cultura como poucos países no mundo, através da forma como traduz sua tradição e criatividade contando suas histórias.
Outro aspecto que valorizo é como eles exploram histórias fora dos temas tradicionais de Hollywood. Minha favorita recente é "Frieren", sobre uma elfa cuja história começa depois que ela já salvou o mundo.
Como a vida dela é muito mais longa que a dos humanos, a humanidade começa a esquecer o que ela fez. É uma obra-prima sobre a passagem e o significado do tempo, o legado que deixamos e como somos lembrados por meio dele.
O PARALELO
A história do Angelo me faz recordar por que gosto tanto do universo de mangás: ambos são jornadas que fazem com que nossos protagonistas saiam constantemente da sua zona de conforto, seja num mundo de fantasia ou não.
Quando você é imigrante, não pode presumir que entende uma cultura apenas porque ela parece familiar na superfície. Da mesma forma, não podemos reduzir uma indústria multibilionária a estereótipos de violência ou infantilidade. Ou pior, ignorar que ela é inovadora de maneiras fora do nosso conceito.

Enquanto indústrias como a do cinema passam por dificuldades para se reinventar e se manter relevantes entre os mais jovens, o mangá e os animes seguem atraindo todas as gerações.
Encerro mais uma viagem a Ásia e ao universo dos mangás relembrando que explorar novas culturas e conhecer novos universos te dá a habilidade de fazer perguntas em vez de afirmações.
É nesse espaço de curiosidade genuína que encontramos não apenas novos mercados, mas novas formas de ver o mundo, reforçando valores e, felizmente, deixando alguns preconceitos para trás.