O outro lado da nuvem: como é ser vizinho de uma “fábrica de IA”

Megaestruturas que alimentam o avanço da IA estão transformando modos de vida e reacendendo debates sobre o custo real do progresso

prédio de data center da Meta instalado no estado da Geórgia, nos EUA
Data center da Meta instalado no estado da Geórgia, nos EUA (Crédito: Peter Essick)

Alex Pasternack 6 minutos de leitura

Os data centers se tornaram o ponto de partida na corrida global pela supremacia da inteligência artificial. Gigantes de tecnologia como Meta, Alphabet e OpenAI já comprometeram centenas de bilhões de dólares na construção de novas instalações.

Mas, apesar das promessas de inovação, o impacto ambiental dessas estruturas é avassalador. Segundo a Agência Internacional de Energia, os data centers dos Estados Unidos consumiram 185 terawatts-hora de eletricidade em 2024 – mais do que toda a população do Paquistão, com seus 248 milhões de habitantes, utilizou no mesmo ano.

Para manter os servidores em funcionamento e evitar o superaquecimento, um data center de 100 megawatts consome diariamente tanta água quanto 6,5 mil domicílios. Assim como no caso das fábricas e ferrovias que impulsionaram revoluções industriais anteriores, os efeitos sobre as comunidades vizinhas são profundos.

A NUVEM GANHA FORMA

Para Beverly Morris, a "nuvem” tem uma aparência bem concreta: prédios enormes, sem janelas, luzes intensas e nuvens de poeira.

Em 2020, dois anos depois de comprar sua casa em Mansfield, na Geórgia (sul dos EUA), ela e o marido Jeff viram começar a construção do que se tornaria um dos maiores data centers da Meta: um complexo de 230 mil metros quadrados, localizado a apenas 300 metros de sua porta.

Beverly e Jeff Morris em frente ao data center da Meta instalado no estado da Geórgia, nos EUA
Beverly e Jeff Morris (Crédito: Peter Essick)

Sem qualquer aviso da empresa ou das autoridades do condado de Newton, a floresta de carvalhos em frente à sua rua de terra foi derrubada. À noite, a claridade das luzes de segurança invadia a casa. “A natureza foi completamente expulsa dali”, conta Morris.

Em 2022, nos dias de maior movimento das obras, densas nuvens de poeira vermelha cobriam o terreno. Após um episódio especialmente grave, ela ligou para o número de telefone exibido em uma placa de construção; pouco depois, uma equipe chegou para lavar a casa com jatos d’água.

“Escorria um rio vermelho do meu telhado”, lembra. “Um dos trabalhadores até filmou, de tão impressionante que era. Tudo estava coberto de vermelho.”

AS NOVAS FÁBRICAS

O termo “nuvem” nunca descreveu bem a infraestrutura física da internet. Agora, com a corrida global pela IA, uma nova metáfora parece mais adequada.

“Todos deveriam parar de chamar de data centers”, disse o secretário do Interior do governo norte-americano, Doug Burgum, em uma conferência em Washington. Em julho, o presidente Donald Trump assinou uma ordem executiva para acelerar a construção dessas estruturas. Burgum citou o CEO da Nvidia: “não são data centers. São fábricas de IA.”

Só que esses enormes armazéns não são fábricas no sentido tradicional. Mesmo os mais avançados empregam poucos trabalhadores fixos: quase tudo é automatizado.

um data center de 100 megawatts consome diariamente tanta água quanto 6,5 mil domicílios.

A potência vem de chips de alto consumo energético – em grande parte, produzidos pela Nvidia – que realizam o processamento necessário para treinar e operar modelos de IA.

No primeiro semestre de 2025, os investimentos em data centers liderados por empresas como Meta, Alphabet, OpenAI, Amazon e xAI, contribuíram para o crescimento do PIB dos EUA na mesma proporção que o consumo das famílias, algo sem precedentes.

Mas o custo não é apenas financeiro, e as empresas não são as únicas a pagá-lo.

Em Mansfield, os constantes trabalhos de escavação e explosões para erguer o centro de dados da Meta, conhecido como Stanton Springs, acabaram afetando o poço de água de Morris. Em 2023, os canos de sua casa estavam entupidos de sedimentos, danificando eletrodomésticos e reduzindo a vazão das torneiras.

prédio de data center da Meta instalado no estado da Geórgia, nos EUA
Crédito: Peter Essick

“Faz anos que não bebo a água da minha casa”, diz ela, que estima já ter gasto cerca de US$ 5 mil em reparos. Um laudo de julho mostrou que o valor de sua propriedade despencou.

A relação direta entre a construção e os danos ainda é incerta. Uma porta-voz da Meta disse ao "The New York Times" que um estudo recente “indicava ser improvável que o centro de dados tivesse afetado o lençol freático local”.

O relatório (analisado pela Fast Company) avaliou o impacto da obra sobre os poços da região. Morris, no entanto, afirma que “ninguém da Meta ou de qualquer órgão apareceu em sua propriedade para realizar o estudo”. A empresa se recusou a comentar o caso.

APETITE INSACIÁVEL

Em escala nacional, o banco Morgan Stanley estima que a demanda prevista de energia para os novos data centers vai exigir 45 gigawatts adicionais – cerca de 10% de toda a capacidade de geração dos Estados Unidos.

A expansão também está elevando o custo da energia: novas linhas de transmissão e subestações necessárias para alimentar a corrida da IA estão contribuindo para aumentos nas tarifas em todo o país.

Os data centers empregam poucos trabalhadores fixos. Quase tudo é automatizado.

E a energia é apenas parte do problema. Para resfriar os chips, os centros consomem volumes colossais de água e frequentemente são instalados em regiões quentes e secas, onde a eletricidade é mais barata, mas os recursos hídricos, escassos.

De acordo com a autoridade local, o complexo Stanton Springs consome cerca de 10% de toda a água usada diariamente no condado de Newton. Um relatório de 2024 alerta que, mantido o ritmo atual, os moradores podem enfrentar déficit hídrico até 2030.

A PEGADA DE CARBONO DA IA SÓ CRESCE

Alguns dos maiores projetos do mundo estão surgindo no sul dos Estados Unidos. Em Mênfis, um supercomputador da xAI, empresa de Elon Musk, vem operando com dezenas de turbinas a gás temporárias e sem licença, agravando problemas de saúde na comunidade local.

No estado vizinho, a Meta obteve aprovação para construir 2 gigawatts em turbinas a gás no condado de Richland, na Luisiana – projeto criticado por falta de transparência e pressa na aprovação.

Não querendo ficar para trás, OpenAI e Oracle estão erguendo um data center de 3,2 quilômetros quadrados no Texas. A obra faz parte do projeto Stargate – parceria com o governo Trump para criar uma infraestrutura nacional capaz de treinar modelos de IA cada vez maiores.

prédio de data center da Meta instalado no estado da Geórgia, nos EUA
Crédito: Peter Essick

Com um investimento de US$ 100 bilhões da Nvidia – grande parte destinado à fabricação de seus próprios chips –, o conjunto de cinco data centers poderá demandar até 10 gigawatts, o equivalente a todo o consumo elétrico da cidade de Nova York.

Em Mansfield, Beverly Morris sente falta dos vaga-lumes que costumavam iluminar seu quintal antes da chegada do centro de dados. Mesmo com os refletores desligados, o local agora emite um brilho constante, visível a quilômetros. O som das obras deu lugar a um zumbido elétrico constante, alarmes e o ronco intermitente de geradores a diesel.

Morris admite sentir-se impotente, mas encontrou algum consolo ao se conectar online, inclusive no Facebook, com outros moradores da Geórgia que lutam contra novos projetos do tipo. “Agora sei que não estou sozinha”, diz.

Ela está certa. Em setembro, o conselho municipal da vizinha Social Circle aprovou por unanimidade uma moratória de 90 dias sobre a construção de novos data centers.


SOBRE O AUTOR

Alex Pasternack é jornalista e escreve sobre urbanismo, recursos naturais, arquitetura e transportes. saiba mais