Brasil na encruzilhada da IA: o que Amsterdam revelou sobre nosso futuro tecnológico

No Brasil, temos uma janela única para desenvolver a regulação sobre IA mais equilibrada do mundo – protetiva sem ser inibitória

estradas azuis e verdes com estrelas amarelas, lembrando a bandeira brasileira
Créditos: Patrick Federi/ Logan Voss/ Unsplash/ Beyza Kaplan/ Pexels

Victoria Luz 5 minutos de leitura

Estava no World AI Summit, em Amsterdam, quando escutei uma frase que me fez repensar completamente o futuro da inteligência artificial no Brasil: “Os EUA estão correndo sem cinto de segurança na IA, a Europa colocou o cinto de segurança e, com ele, veio o pé no freio.”

A ironia é que, enquanto ouvia essa observação, o PL 2338 estava sendo discutido na Câmara dos Deputados, se inspirando no modelo europeu que presenciei em ação em Amsterdam.

Durante três dias intensos de evento, conversei com CEOs, CTOs e fundadores de toda a Europa. O que descobri me assustou: os dados oficiais do Eurostat de 2024 mostram um cenário preocupante. Enquanto a Dinamarca lidera na Europa com 27,6% das empresas usando IA e a Suécia com 25,1%, esses números ficam atrás do ritmo global de adoção.

Mundialmente, cerca de 35% das empresas reportam usar inteligência artificial. Nos Estados Unidos, 42% das grandes empresas (com mais de mil funcionários) já têm IA ativamente implementada.

Na Europa, os números despencam dramaticamente em outros países: a Romênia registra apenas 3,07% das empresas usando IA, seguida pela Polônia, com 5,9%, e Bulgária, com 6,47%. Enquanto outras regiões aceleram na implementação da IA, a Europa patina em burocracias.

Mas o dado mais chocante vem da Bélgica: apenas 41% das empresas consideram importante integrar IA nas funções de negócio – o ranking mais baixo de toda a Europa. Para contextualizar a gravidade, países como a Noruega lideram, com 76% de priorização estratégica, seguidos por Holanda e Suécia (70% cada).

só 13,5% das empresas europeias usam IA, um crescimento de apenas 5,5 pontos percentuais em um ano.

O AI Act europeu, implementado há um ano, criou um labirinto de conformidade que está sufocando justamente quem mais precisa de agilidade: as startups e empresas inovadoras.

Vi fundadores explicando como precisaram desviar recursos preciosos do desenvolvimento de produtos para conformidade regulatória, transformando empresas de tecnologia em departamentos de compliance.

Ellen Svanström, CDIO do H&M Group, em um dos painéis, comentou: “você sempre precisa equilibrar risco e produtividade. Se não conseguir implementar rapidamente, não está inovando, está administrando.” O H&M, uma das maiores varejistas do mundo, estava lutando contra a própria regulação europeia para manter sua competitividade.

O PARADOXO DA SEGURANÇA EXCESSIVA

A situação fica ainda mais dramática quando se vê casos concretos de sucesso sendo travados pela regulação. A KBC Bank, por exemplo, apresentou um caso impressionante: conseguiram entre 45% e 50% de ROI implementando IA para tradução automatizada em suas operações multi-idiomas.

Mas Christiaan Philipsen, head do centro de idiomas da KBC, admitiu que projetos similares agora enfrentam meses de aprovação regulatória antes mesmo de começar.

Paralelamente, a EY mostrou números que deveriam fazer todo gestor brasileiro prestar atenção: 84% dos funcionários que usam ferramentas de IA se sentem mais positivos sobre suas carreiras. A consultoria processou 12 milhões de linhas de código aceitas por meio do GitHub Copilot, redirecionando desenvolvedores para tarefas de maior valor estratégico.

perfil de pessoa usando blusão azul e estrelas amarelas, estampa da bandeira da União Europeia
Créditos: Henri Lajarrige Lombard/ Igor Omilaev/ Unsplash

Mas aqui está o ponto crucial: enquanto a EY celebrava esses resultados, empresas europeias ainda estão presas em comitês intermináveis debatendo se podem usar ChatGPT para rascunhos internos. Na Alemanha, apenas 34% dos funcionários se sentem adequadamente treinados para trabalhar com IA, um reflexo direto da cautela regulatória excessiva.

Um dos dados mais chocantes que circulou no evento foi que 95% dos pilotos de IA na Europa falham. Inicialmente, pensei que fosse uma questão tecnológica. Mas assistindo ao painel de Fergal Reid, diretor de IA da Intercom, e outros executivos, percebi que não é sobre tecnologia – é sobre paralisia regulatória.

O CUSTO REAL DA CONFORMIDADE

Durante o painel sobre colaboração entre startups e empresas, presenciei um exemplo devastador. Um fundador de uma startup de oito meses explicou como teve que investir recursos escassos em certificações desde agosto – não porque agregava valor ao produto, mas porque era pré-requisito para qualquer contrato corporativo na Europa.

“Como uma empresa nascente vai competir se precisar gastar seis meses e recursos cruciais apenas para estar em conformidade?”, perguntou ele. A plateia ficou em silêncio porque todos sabiam a resposta: não compete.

Jean Arnaud, diretor de programas estratégicos do Cambridge Innovation Center, que trabalha com 10 mil startups globalmente, foi categórico: “sem orquestradores no meio para navegar a burocracia, não vejo como startups podem ser bem-sucedidas na Europa.”

Cada dia que passamos discutindo vírgulas regulatórias é um dia que perdemos para criar um ambiente mais favorável à inovação.

Esse cenário se reflete nos números mais alarmantes: só 13,5% das empresas europeias usam IA – um crescimento de apenas 5,5 pontos percentuais em um ano. Globalmente, 74% das empresas ainda lutam para extrair valor real de seus investimentos em IA, mas na Europa essa paralisia é ainda mais pronunciada.

E por que essa discussão importa? Porque há exemplos do que é possível fazer quando a inovação não fica travada em burocracias. Um ótimo caso é o da Expedia Group: a CTO Ramana Thumu compartilhou como a empresa tem 1,5 mil agentes de IA em produção, servindo 1,4 bilhão de consumidores diariamente.

A diferença? Eles começaram pequeno, escalaram com responsabilidade e focaram em resultados, não em processos burocráticos intermináveis.

O CAMINHO QUE O BRASIL PODE ESCOLHER

Aqui está a questão central: o Brasil está se inspirando no modelo europeu, por meio do PL 2338, mas ainda há tempo de corrigir o curso e encontrar um equilíbrio mais inteligente.

A Europa criou um monstro regulatório que está dificultando sua competitividade tecnológica. Craig Stephen Slavtcheff, diretor de pesquisa e desenvolvimento da Kimberly-Clark, foi claro: “velocidade é a moeda corrente da inovação. Quanto mais rápido você inova, mais provável é conseguir posições dominantes no mercado.”

O Brasil tem uma janela única: estamos atrás o suficiente para aprender com os erros europeus, mas ainda temos tempo de criar regulação inteligente. O PL 2338 pode ser nossa oportunidade de desenvolver a regulação mais equilibrada do mundo – protetiva sem ser inibitória.

perfil dos prédios do Congresso Nacional sob fundo representando inteligência artificial
Crédito: Stefan Lambauer/ iStock/ Freepik

Mas essa janela está se fechando rapidamente. Cada dia que passamos discutindo vírgulas regulatórias é um dia que perdemos para criar um ambiente mais favorável à inovação, aumentando desnecessariamente os custos de conformidade para empresas brasileiras.

A pergunta não é se vamos regular a IA no Brasil. A pergunta é se vamos regular para inovar ou para inibir. O PL 2338 não é apenas uma lei, é a definição do nosso futuro tecnológico.

Amsterdam me mostrou que é possível criar regulação responsável que protege sem paralisar. Escolhamos sabiamente. O futuro do país depende disso.


SOBRE A AUTORA

Victoria Luz é especialista em inteligência artificial aplicada aos negócios e fundadora da Mind.AI, empresa voltada ao desenvolviment... saiba mais