Você conhece chefes narcisistas, mas já ouviu falar de empresas narcisistas?

A obsessão por reputação e lealdade está criando ambientes em que a verdade dá lugar à conveniência e o debate, ao medo de discordar

homem vestindo terno e gravata se olha no espelho
Crédito: Anthony Harvie/ Getty Images

Nik Kinley 4 minutos de leitura

A falsidade é a mãe da enganação. Sempre que dizemos algo em que não acreditamos, contamos uma mentira, pequena ou grande. Ainda que seja apenas uma dissimulação, ela peca pela falta de honestidade e esconde o que realmente pensamos ou sentimos. Repetida ao longo do tempo, essa prática corrói a confiança, a comunicação e o entendimento entre as pessoas.

Mas por que tantas organizações, muitas vezes sem perceber, incentivam a falsidade em seus funcionários? Parte da resposta está nas redes sociais. A outra parte, no narcisismo.

Desde o início dos anos 1980, psicólogos vêm registrando um aumento constante do narcisismo: uma crescente preocupação com a autoimagem e com o que os outros pensam de nós.

As causas exatas ainda não são claras. Mudanças nos estilos de criação, avanço do individualismo e obsessão com a autoestima são apontados como fatores.

As redes sociais aceleraram o fenômeno, mas o movimento começou muito antes do Facebook. Um grande estudo com universitários mostrou um aumento de 30% nos níveis de narcisismo nos 25 anos anteriores ao lançamento da rede.

Seja qual for a origem, o efeito é visível em toda parte. As pessoas se tornaram mais sensíveis à forma como são percebidas. Isso se reflete no modo como constroem uma “marca pessoal” no Instagram e uma “marca profissional” no LinkedIn.

A cultura do cancelamento e líderes políticos que valorizam lealdade acima da competência reforçaram a mensagem: “cuidado com o que você diz – ou arque com as consequências”. Mesmo sem pensar nisso ativamente, essa pressão cultural molda o comportamento.

NARCISISMO CORPORATIVO

Não são apenas as pessoas que estão se tornando mais narcisistas, as organizações também. Mais ou menos na mesma época em que o narcisismo individual começou a ser monitorado, pesquisadores identificaram um fenômeno semelhante em larga escala: o narcisismo corporativo.

Empresas passaram a exigir demonstrações de lealdade dos funcionários, enfatizando a importância de estarem “alinhados” e “na mesma página”. Assim como as pessoas, as organizações sempre se preocuparam com a própria imagem, mas há sinais de que essa obsessão atingiu um novo patamar.

Vários fatores sociais contribuíram para isso. Assim como qualquer pessoa, líderes hoje se preocupam mais com reputação. Redes sociais e a "cultura do cancelamento" forçaram empresas a monitorar de perto sua imagem. Com qualquer mensagem capaz de viralizar em segundos, é compreensível que tentem controlar o que seus funcionários dizem.

ícones de pessoas ordenados em círculo com um ícone de cor diferente ao centro
Crédito: Denis_prof/ iStock

Há também fatores aparentemente positivos. Investimentos em engajamento e comunicação interna, por exemplo, podem contribuir para uma cultura mais alinhada. Mas, se os CEOs de hoje são mais narcisistas ou preocupados com imagem do que os de décadas passadas, o resultado pode ser uma cultura em que a dissidência é vista como ameaça.

Essa dinâmica leva empresas a buscar afirmação e alinhamento a qualquer custo. O que começa como uma preocupação legítima com motivação e reputação se transforma, muitas vezes, em uma obsessão por positividade e controle.

Mesmo quando a empresa não exige explicitamente essa postura, alguns funcionários – mais conscientes da própria imagem – podem presumir que é o que se espera deles.

O problema é que um ambiente excessivamente positivo pode rapidamente se tornar tóxico.

SINTOMAS E RISCOS

Os sinais de narcisismo corporativo lembram muito os do narcisismo individual: preocupação excessiva com imagem, punição à discordância e reação negativa a qualquer questionamento. Mais do que o comportamento em si, o que realmente importa é a percepção dos funcionários, ou seja, se eles acreditam que essa é a forma de agir da empresa.

As consequências são previsíveis e prejudiciais. Assim como ocorre com pessoas, o narcisismo corporativo destrói a confiança, a comunicação e a capacidade de compreender falhas.

Estudos mostram que o esforço exagerado para criar uma cultura de positividade pode prejudicar o fluxo de informações e a tomada de decisões, deixando a empresa cega para suas próprias vulnerabilidades.

As empresas sempre se preocuparam com a própria imagem, mas há sinais de que isso atingiu um novo patamar.

Alguns argumentam que isso é inevitável em um sistema capitalista competitivo. Em parte, pode ser verdade. Mas não totalmente. É possível evitar que o incentivo à lealdade e à harmonia se transforme em culto à obediência.

O escritor Somerset Maugham resumiu bem: “o que chamamos de falsidade é, muitas vezes, apenas um método de evitar o desprazer.” O “desprazer”, nesse caso, é o conflito. E é justamente o conflito saudável que rompe o ciclo da falsidade.

Cabe aos líderes e organizações estimular, recompensar e proteger o questionamento. Em vez de se preocupar tanto em parecer autênticos e inspiradores, deveriam criar espaços para que seus funcionários possam ser.

A sinceridade pode gerar desconforto, mas é ela que sustenta a confiança. E é a confiança que sustenta tudo o mais.


SOBRE O AUTOR

Nik Kinley é consultor e coach especializado em liderança. saiba mais