No século 20, as nações disputavam petróleo. Hoje, brigam por cérebros
É preciso um novo contrato social que trate a inteligência humana como um recurso estratégico compartilhado, e não como propriedade privada

Na inteligência artificial, poder de computação e dados são importantes, mas as pessoas são ainda mais.
Por trás de cada modelo inovador, de cada salto tecnológico e de cada “chatbot revolucionário”, há um grupo cada vez menor de cientistas, engenheiros e matemáticos capazes de criá-los. O verdadeiro limite para o avanço da IA na próxima década não está apenas no hardware – está no capital humano.
Em todo o mundo, uma corrida silenciosa está em curso por esse capital. As empresas mais avançadas em inteligência artificial – como OpenAI, Anthropic, DeepMind, Meta, Google e algumas na China – já não disputam apenas clientes ou GPUs. Elas estão competindo por cérebros.
Nos últimos dois anos, o padrão de contratações e aquisições dessas empresas começou a parecer um mapa geopolítico. A Anthropic e a OpenAI têm atraído equipes inteiras de pesquisa do Google e da Meta, oferecendo pacotes de remuneração que chegam à casa dos nove dígitos.
Apple e Amazon, que entraram mais tarde na corrida, estão comprando startups não pelos produtos, mas pelos engenheiros que as criaram. Da mesma forma, o capital de risco também mudou de foco: em vez de financiar ideias, agora investe no chamado “acqui-hiring”– a compra de talento humano antes que ele amadureça em outro lugar.
Diversas análises mostram que universidades de elite nos Estados Unidos – especialmente Stanford, Berkeley, Carnegie Mellon e MIT – continuam sendo as principais fontes de talentos para os laboratórios de ponta, reforçando uma concentração de conhecimento sem precedentes em poucas empresas e regiões.
Essa concentração pode acelerar o progresso no curto prazo, mas também aumenta a fragilidade do setor. Quando a inovação fica concentrada em um pequeno grupo de empresas, o ecossistema se torna monocultural: as mesmas suposições, estruturas éticas e motivações comerciais se repetem.
Como resultado, abordagens alternativas – como o raciocínio simbólico, os modelos híbridos e as arquiteturas descentralizadas – acabam perdendo espaço e financiamento.
A CORRIDA GLOBAL POR MENTES
Enquanto isso, países estão começando a tratar pesquisadores de inteligência artificial como antes tratavam físicos nucleares. O Reino Unido criou vistos especiais para atrair os melhores cientistas para seu órgão de pesquisa, o Frontier AI Taskforce.
O Canadá, por meio do programa Global Talent Stream, passou a conceder autorizações de trabalho a engenheiros de IA em menos de duas semanas. Já a França está oferecendo incentivos fiscais e bolsas de pesquisa para empresas que instalem seus laboratórios em Paris ou Grenoble.
Quando um pequeno grupo controla o conhecimento sobre IA, ele define quais problemas merecem ser resolvidos ou não.
A China, por sua vez, diante das restrições de exportação de chips, passou a tratar a inteligência humana como um recurso estratégico. Suas principais universidades formam dezenas de milhares de especialistas em IA por ano, muitos deles treinados em modelos de código aberto desde que as limitações impostas por Washington entraram em vigor.
Em outras palavras: cérebros são os novos semicondutores.
Ironicamente, as empresas que mais se beneficiam do talento global são também as que o tornam escasso. Ao oferecer salários astronômicos e contratos de exclusividade, criam um campo gravitacional que atrai especialistas de universidades e startups.
As universidades – que sempre foram o berço da inovação em IA – estão perdendo pesquisadores para o setor privado em um ritmo inédito. O resultado é um vácuo de pesquisa: instituições públicas simplesmente não conseguem competir.
CONCENTRAÇÃO PROBLEMÁTICA
Essa concentração de mentes no setor corporativo traz outro custo: a homogeneidade intelectual. Quando as mesmas pessoas circulam entre as mesmas empresas e os mesmos investidores, a fronteira da IA se torna mais estreita, previsível e menos diversa.
As próximas grandes descobertas talvez nunca aconteçam – não por falta de poder computacional, mas porque a comunidade global de pesquisa foi treinada para pensar da mesma forma.
A concentração de talento também levanta questões éticas. Quando um pequeno grupo controla a maior parte do conhecimento mundial sobre IA, ele define quais problemas merecem ser resolvidos – e quais serão ignorados.

Essa tendência já é visível. Bilhões estão sendo investidos em modelos voltados à produtividade, marketing e previsões financeiras, enquanto projetos nas áreas de clima, educação e saúde continuam subfinanciados. A promessa de que a IA “vai beneficiar a humanidade” se torna vazia quando a própria humanidade não tem voz nesse processo.
Diversidade de pensamento, de origem e de localização não é um luxo moral – é um requisito básico para a resiliência. Sistemas homogêneos falham de formas igualmente homogêneas.
A solução não está apenas na regulação, nem exclusivamente no livre mercado. É preciso um novo contrato social para o talento – um que trate a inteligência humana como um recurso estratégico compartilhado, e não como propriedade privada.
No século 20, as nações disputavam petróleo. No século 21, disputam cérebros.